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29 abril 2007

Boquiaberta

Aquela mulher tinha um rosto escorrido como se fosse uma daquelas máscaras de látex, vendidas na época de Carnaval ou para o Halloween. E a voz acompanhava as ondulações decrescentes do seu rosto. Saía quase inaudível pela boca, esgueirando-se pelos cantos, por trás dos dentes, envolvendo a língua e escorrendo-se pelos lábios.

- Já chegou o livro que eu encomendei?

- Q-u-e l-i-v-r-o? – perguntou com olhos e boca quase encostando no tampo da mesa.

Entreguei um papel com todos os dados do livro e percebi que o movimento do braço e da mão que estendeu para pegar o papel tinha a mesma conformação do rosto. Esguio o braço, fina a mão, brancos e lentos em câmera lenta pegaram o papel e iniciaram o caminho de volta até perto do rosto.

- A-h, s-i-m, c-h-e-g-o-u, v-o-u p-e-g-a-r!

Posicionou a palma da mão direita sobre a mesa, tomou impulso e levantou-se da cadeira. Era alta, fina e esguia como mão e braço; escorrida como o rosto. E andava como uma sereia andaria em terra firme, forçando um pé após o outro com dificuldade, tentando mostrar uma naturalidade que não existia. Não parecia estar à vontade naquele ambiente, nem naquele corpo, mas esforçava-se para mostrar competência.

O livro estava em uma estante no fundo da livraria, atrás de outras repletas de livros usados e novos amontoados sem ordem nas prateleiras. Por cima dessas estantes avistei o improvável movimento da vendedora que pegava o livro encomendado na prateleira mais alta. Esticou-se além do que permitia sua condição de humana. Mistura de sereia e boneca de látex, parecia personagem de desenho animado esticando um braço a fim de salvar um cidadão em perigo, ou pegar uma bala recém-atirada, ou pegar um livro fora do alcance do resto da humanidade.

- A-q-u-i e-s-t-á, p-o-d-e p-a-g-a-r n-o c-a-i-x-a. O-b-r-i-g-a-d-a e d-e-s-c-u-l-p-a p-e-l-a d-e-m-o-r-a, disse, soletrando as palavras.

Boquiaberto com aquela situação, senti meu queixo caído quase tanto quanto o dela. Paguei e saí dali segurando o livro debaixo do braço, com uma estranha sensação de que havia um par de olhos me acompanhando, virando a esquina atrás de mim.

14 abril 2007


FRACTALIDADE
Somos todos da mesma receita
repetida,
revestidos de cores e formas variadas

Somos todos do mesmo forno
universal,
assados de tempo e espaço diferentes

Somos todos da mesma célula
insétil,
dotados de vontade e sorte individuais


Somos todos da mesma história
milenar,
recheados de idas e vindas tão atuais

Somos todos do imenso fractal
ininterrupto,
compostos de lados e dados desiguais.



MEU MUNDO
Meu mundo é um amontoado de pesares,
olhares furtivos,
esquivos encontros

Meu mundo é um amarradinho,
temperinho variado,
mercado de variedades

Meu mundo não é tão vasto,
casto ou com rimas,
lágrimas sem solução

Meu mundo, ah, mundo!
de fundo ou de frente
igualmente me serve

É mundo, é chão,
não é qualquer precipício,
é indício da minha criação!



LIBERDADE
Se tivesse asas
passaria meus dias nos ares
acariciando minha pele
com a sedosa e macia
ação do vento;
com o calor do sol
e a suavidade das nuvens

Se tivesse asas,
como Ícaro,
eu arriscaria ver-te do alto
Ensaiaria altos e baixos
pingue-pongue
entre o sol e o brilho da paisagem

Se tivesse asas
não passaria meus dias
desviando de abismos e
obstáculos
entre pernas e cascalhos

Meu limite seria o infinito
brilho da paisagem
Entre céu e mar
Entre sol e eu
em mergulhos infindáveis
de emoção


PASSADO
Havia mares
lugares sombrios
altares sem reis

Havia pouco
naquele louco mundo
solto na imaginação

Havia esperança
de criança nascida
na dança da vida

E pedras e flores
e dores e luas
e suores na escuridão.


APOSTA
Às vezes voo
  Às vezes nada
Quantas vezes repouso
na mansidão do planalto

Às vezes rua,
  outras vezes mata
Descoberta da chave
da liberdade

Muitas vezes vertigem
das vezes tentadas
em voo de liberdade


Outras vezes perigo
nas vezes de travessia
nos caminhos de volta.


OUTONAL
Os outonos são sempre assim:
cinzentos
instáveis
sonolentos.
Têm aquele jeito de aconchego,
a expectativa de dias mais frios e sombrios,
mas a esperança
de que novas primaveras cheguem
antecedendo o sol de verão.

Mas os outonos são todos iguais:
se enfeitam com folhas secas
- camufladas paisagens
de cores virtuais em dias cinzas –
deixando expostos galhos
- estruturas sobreviventes
de muitas estações.

Os outonos são inevitáveis,
passagem obrigatória.
Parte sossegada de uma longa viagem!


ENTRESSAFRA
Há muito tempo não faço poesia como se faz um filho,
com tesão, criatividade e iluminação.
Há tempos não descubro a rima certa para a emoção!
Fico aí a desfiar um dicionário,
expondo conceitos,
dizendo esconder cartas do baralho,
apenas desenhando e colorindo versos
como se arco-íris fossem
a se enterrar em dourados potes.


Há muito tempo eu não faço poesia à luz do dia
conjugando o verbo criar.
Há tempos não me entrego à brincadeira de inovar!
Fico por aí fazendo cálculos
para não ultrapassar a métrica liberdade da expressão;
buscando escolas,
apenas encaixando rimas nos versos,
como se estrelas fossem
obrigadas a atravessar a madrugada sem pretensão.

Há muito tempo eu não descubro a poesia na janela
camuflada atrás de uma nuvem.

Há tempos não vislumbro a mágica ilusão!
Fico então a versejar um aguaceiro,
afogando mágoas,
confessando haver sempre um novo dia,
apenas enganando a fome de viver,
como se vaga fosse sobre o mar
a enterrar na areia garrafas vazias.


BRASIL
Musa cantada,
encantada entre montanha e mar.
Quanta mata,
morte,
sertão e sonho
se encontram em suas entranhas.
Quanto assalto,
quanta manha,
tamanha fome
em terra tão farta

Os homens não souberam cultivar as sementes
Somente tirara sua seiva
abriram veias
deixando sangrar todo seu ouro
mar afora.
Os homens (seus homens)
vasculharam seus tesouros
Possessos, possuidores,
se fizeram donos,
senhores de seu corpo,
e abandonaram os restos
para quem realmente ama sua riqueza.

Musa passiva,
decisiva entre descobertas e perdas.
Quanta gente,
graça,
interior e beira-mar
passeiam por suas areias.
Quantos botos,
quantas sereias,
tamanha crença
em terra desenganada

Os homens não souberam rezar as encomendas
com medo, acenderam velas,
abriram belas
seitas em seu coração
terra adentro.
Os homens (seus homens)
penetraram suas vontades
Dominadores, defensores,
se fizeram pais-de-santo,
senhores de seu espírito
e abandonaram um corpo inerte
para quem precisa colher o pão.



PROCURA

Eu queria saber
quem é que escreve
este poema;
quem é que guia minha
alma;
quem é que acerta
a rima
o ritmo
o compasso;
quem é que acerta
e me aperta o passo.


Eu queria saber
quem me escreve
no mundo;
quem me inscreveu
para pensar e
tentar
buscar eternamente a felicidade
e a liberdade

Cadê o autor deste
tema?
Gostaria de ver
o anjo que guarda este poema
que guia minha mão,
- anjo de alma, de pena -
a alma da minha mão,
a pena na mão;
que escolhe a rima
que recolhe as paixões
que esparrama os versos por este chão.


MOTIVOS
Só quero saber se existe
Motivo
Só quero saber se
Motivo
Só quero saber
Motivo
Só quero
Motivo

Motivo
Motivo
Motivo...

- Quando acabar a razão
cadê o coração?
- Sem motivo,
com razão.



CONTEMPLAÇÃO
Quando te olho
vejo sair de ti tantas histórias!
Tantos sonhos naufragados
aparecem em tuas retinas;
tantos fantasmas,
amargurados medos
ainda perdidos,
entreolhando como olhos entre dedos.

Mas, quando te contemplo
- te olho com outros olhos -
muda-se a página da história.

Vão-se os fantasmas
esgueirando-se
à luz da descoberta;
fogem os medos,
quando os dedos,
a percorrer teus traços,
descobrem mil outras histórias
naufragadas na rotina.


SER UNIVERSAL
Fractais,
preciosos cristais,
pedaços de universo dentro de minhas células,
fraturas de um único corpo
- sempre o mesmo - molde de todas as partes.
Fractalidade,
qualidade de ser universal,
densidade do efêmero estar
quando a passagem garante o retorno ao ponto de partida
no exercício do infinito jogo do existir.
Ser, estar, não ser, ficar para partir,
praticar a eterna impermanência,
fractalizar a existência!


GOTA
O mundo é miúdo,
é gota de orvalho sobre o capim;

É apenas um verso, esse universo,
do imenso poema do sem-fim;

Pedaços entrelaçados
soltando haicais por todos os lados


QUEM SOMOS
Afinal,
quem sou?
quem somos?
Nós de novo, neste imenso sertão,
apertados
indesatáveis
em reiterados lamentos de solidão

Somos
porque já fomos
início e meio

Somos
porque ainda não findamos

Somos porque,
eternos,
continuamos guardando o universo em cada farelo
infinitamente dividido e multiplicado

Somos,
afinal,
quem um dia criou a magia
e jamais teve vontade
de voltar atrás!


QUÂNTICA SAUDADE
Que saudade é esta que eu sinto de lugar nenhum,
de qualquer um,
de um ou outro amor que nunca existirá?
Que quântica dimensão é esta
que me enleva e me submete,
que me tira o chão e me promete o universo que cabe na minha mão?

Oh, quanta dúvida de um conhecimento nato
que me pertence desde que o mundo é mundo;
desde que o átomo transgrediu a receita acadêmica
e se dividiu
e se reproduziu
e me produziu à imagem e semelhança de sua menor partícula.

Oh, tentação de também transgredir as fórmulas
e estourar a boca do balão;
jogar no espaço infinitos pedaços em manifestação big bangniana
e refazer meu universo
nem que seja só para confirmar que tudo será
sempre
milimetricamente igual à totalidade do cosmo.


MAIS DE MIL E UM DIAS
É assim, passando o tempo, folha por folha,
que vou vendo caírem minhas tardes,
que vou olhando passar o rio
por janelas que sempre estarão abertas para um poente certo.

É assim, desfolhando as horas,
e desfiando a linha do horizonte,
que resolvo desafiar o jogo
e remontar o quebra-cabeça ininterruptamente!

Como uma Sherazade repetitiva na história
quero enganar o algoz
desacelerar os ponteiros
e arrancar as asas do cavalo para deixar o carro menos veloz
na travessia
e multiplicar dias e dias e dias
rumo às noites
inevitáveis.


CÓDIGO GENÉTICO
O dia está cinza
e as formigas prosseguem em suas rotas,
porque são formigas
O dia pode estar ensolarado, chuvoso, cinza ou azulado
e as formigas vão estar sempre formigas.
Eu, que não sou formiga,
fico triste com um dia cinza,
me alegro com o sol
e me derreto toda quando está chovendo.
Enquanto isso, as formigas seguem seus caminhos infinitamente.


LANÇAMENTOS
Lanço no ar uma ideia engarrafada,
visível, mas
intangível possibilidade

Lanço no mar uma pedra desaforada,
emotiva, porém
altiva eletricidade

Fico aguardando o retorno:
garrafada na cabeça ou
a descarga elétrica,
efeitos de lançamentos improcedentes.


PELA TANGENTE
Enquanto o pássaro escapava do meu campo de visão,
virando à esquerda do vértice do meu horizonte
eu observava, extasiada, o pôr-do-sol pousando,
lentamente, aos meus pés.

Enquanto o sol tangenciava o planeta
driblando o vértice do planalto
eu aguardava a lua chegar cheia de medos
cochichando segredos em meus cabelos

Era sempre assim desde sempre, desde sempre. Agora
que o mundo já se acha maduro
eu esperava que alguma coisa nova acontecesse
mas não se pode mudar a rotina dos astros.


PROCESSO
Armado em blocos, 
teu nome agora é objeto, 
um processo poético. 
A rima está no equilíbrio da própria forma 
geométrica, 
uma sete mostrando o universo. 
Como você: 
olhando estrelas 
sem tirar os pés do chão!