Pesquisar este blog

29 março 2013

Sonhos

Andava por aquelas ruas empoeiradas com muita desenvoltura. Apesar de todas as recomendações da mãe, sobre supostos perigos escondidos pelas pedras do caminho, não tinha medo. Não sabia por que ter medo. Afinal, criança ainda, temia alguma coisa, mas tinha o espírito aventureiro de toda criança na sua idade. Dez, 12, nem tão criança, meio pré-adolescente, com vontade de ser adulta. Mas o que incomodava naquele momento não eram os conselhos da mãe e sim a poeira que habitava aquele lugar.
No silêncio do começo da tarde, de um domingo qualquer há décadas, sabia que carregava atrás de si um rastro de poeira. Imaginava um microrredemoinho se formando toda vez que dava um passo e levantava um pé do chão. Poeira envolta em poeira, uma sequência de redemoinhos seguindo seus pés, crescendo, crescendo, até seguir a sua frente já visível. Andava de um lado para outro, procurando amigos depois do almoço de domingo, mas não havia nenhum amigo à vista. Provavelmente se renderam aos cuidados das suas mães. Vai ver são mais temerosas que a sua mãe, pensou, por isso não saiu ninguém depois do almoço. Vai ver não gostam de poeira, e de sol, e querem tirar um cochilo para brincar mais tarde.
Atravessou a rua pela centésima vez. Da sua casa até o portão da casa em frente. E daí seguiu para o portão ao lado da sua casa e desta para o outro lado, transversalmente, até acabar a rua. Não que a rua fosse longa, mas seguindo assim em ziguezague multiplicava-se por 20, porque havia 10 casas de cada lado da rua. E assim foi passando seu tempo, pra lá e prá cá, somando, multiplicando, olhando os números pregados nas paredes de cada casa. Em uma delas havia três pássaros de cerâmica colados ao lado do número; em outra, um vaso com uma samambaia enorme, quase arrastando no chão. Minha mãe não gosta desta planta, pensou, porque disse que solta muita folha e dá trabalho para manter o chão limpo. Avistou ainda uma parede num tom verde tão forte que parecia uma floresta. Parecia, porque na verdade nem sabia como era uma floresta. Mas a professora havia falado que era toda verde. Então deve ser do jeito dessa parede.
Estava cansada, mas achava divertido ficar de um lado para outro na rua, passando o tempo. Olhava cada detalhe das casas. As cores, as texturas das paredes (nem sabia o que era textura, mas via que algumas paredes eram diferentes de outras, então também observava isso). Um vizinho, por exemplo, colou na parede de frente da casa umas tiras de madeira, deixando a parede listrada, muito engraçada. Outro pintou a parede com muita tinta e deixou a tinta crespa, cheia de pontas. Era muito ruim brincar naquela casa porque a parede machucava quem se encostasse nela. A vizinha do lado da sua casa fez uma colagem na parede, com um monte de pastilhas que foi pegando pelas ruas durante anos de sua vida. Foi o que ela contou quando as crianças perguntaram.
Então, depois de atravessar diversas vezes a mesma rua e ficar olhando as paredes de cada casa a sua frente, começou a andar no meio da rua observando poeira, pedra e outras coisas pelo caminho. Os pequenos redemoinhos continuavam a persegui-la, tinha certeza, porque sentia uma brisa nos calcanhares e uma aspereza entre o chinelo e os pés. De vez em quando sentia também umas pedrinhas entre os dedos, ou debaixo dos pés. Quanto incômodo para seus pés. Foi até o fim da rua e voltou. Neste momento sentiu outro elemento que até então não a tinha incomodado, porque estava nublado: o sol. Com o vento aumentando, as nuvens se dissiparam e o sol bateu de frente assim que fez a volta na rua. Não se sentia à vontade, não por causa do calor, mas porque o sol a impedia de abrir os olhos para continuar vasculhando o caminho. Olhou em volta e não viu solução, porque nem árvore havia na rua ou na calçada. Correu para casa, carregando atrás de si um rastro de poeira tão grande como não havia visto ainda naquela tarde. Entrou em casa com os pés sujos de terra e ouviu a reclamação da mãe. Voltou até o tapete do lado de fora da porta e deixou ali seus chinelos. Como não encontrou ninguém para brincar e não havia mais o que fazer, deitou para tirar um cochilo. Acordou com os amigos chamando do lado de fora da janela, reclamando porque só ela não estava na rua com eles por dormir demais. Ao mesmo tempo, ouviu a mãe chamando para que fosse almoçar, dizendo que o almoço já estava frio, pois ela dormia desde as 11h da manhã. 
(03.06.12)

23 março 2013

Tristeza de escrever


"Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
Por isso a palavra escrita é sempre triste..."

Mário Quintana

Apontamentos de História Sobrenatural

05 março 2013

03 março 2013

Uma pasta de lembranças

Assim que entrei naquela loja, especializada em bolsas, malas e outros objetos confeccionados em couro, um determinado cheiro trouxe-me de volta à lembrança minha primeira pasta escolar. Marronzinha, com duas fivelas que fechavam uma aba larga por cima da abertura, uma alça confortável para minhas mãos de seis anos de idade, a pastinha tinha um cheiro inconfundível. Tinha também barulhos que até então não conhecia, como o som dos lápis de cor batendo uns nos outros, soltinhos dentro da pasta.
O inesquecível cheiro da pasta detonou imediatamente uma sequência de recordações que me arremessaram para o meu primeiro dia de aula, quando a pasta desempenhou seu papel de coadjuvante. Revi as cenas daquele dia como se estivesse assistindo a um filme de ficção.
Cena 1 – Com a pasta marrom na mão esquerda, a mão direita segurando firme no corrimão de madeira de lei da escada em curva, a recém-chegada aluna sobe para o segundo andar, integrando uma fila de também novos alunos ansiosos por ingressar na nova etapa de suas vidas. Se a câmera buscar um close da menina vai registrar sua respiração ofegante, uma gotinha de lágrima nos cantos dos olhos, as mãos suadas deixando marcas no corrimão.
Cena 2 – A menina tem sua primeira visão da sala de aula: é enorme, dirá mais tarde em casa, para os pais. Toda branca, janelas gigantescas pintadas de verde-claro, mesas coladas nas cadeiras, que chamam de carteiras, um enorme quadro verde, que chamam de quadro-negro, e um monte de giz e apagador sobre uma escrivaninha que serve de mesa da professora.
Cena 3 – A professora pede para os alunos pegarem caderno, lápis e borracha e a menina, pela primeira vez, abre a pasta para usar seu material escolar. Ela acha que foi neste momento que sentiu mais forte o cheiro inconfundível da pasta, porque estava sentada e, para abrir a pasta, teve que colocá-la sobre as pernas o passar a aba perto do nariz para virá-la para trás e tirar o caderno, o lápis e a borracha. Foi quando percebeu também que a parte de dentro do couro não era lisa como a parte de fora. Ainda se deteve por um ou dois segundos passando a ponta do dedo indicador da mão direita no material e teve tempo de lembrar que era igual a uma bota da sua irmã.
Cena 4 – A professora mostra, pela primeira vez, sua autoridade, perguntando alto se todos já estavam com o material sobre as carteiras. Ela fechou a pasta rapidamente e a colocou embaixo da mesa. Já sabia que havia um local para colocar material sob a mesa, porque já batera um dos joelhos na madeira.
Cena 5 – A vendedora da loja pergunta: “Posso ajudá-la? Procura bolsa ou pasta?”, e toda a sequência em flashback é substituída por uma cena do presente.
Cena 6 – A menina, já adulta, agradece, pede desculpas à vendedora e sai da loja ainda sentindo o cheirinho da antiga pasta. (2006)