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25 dezembro 2013

Vitrine

Se Papai Noel existe
o que é que eu estou fazendo aqui
na frente das vitrines,
questionando o lado comercial do Natal,
sentindo pena dos meninos
que na rua pedem esmola dizendo que precisam levar arroz para a mãe?

Se Papai Noel não existe
posso considerar explicada a realidade
das ruas,
que droga meninos e adultos,
que atropela pedestres,
que mata as mães que esperavam o arroz em casa,
que concede mandato a corruptos?

Se Papai Noel existisse
poderia eu sonhar
com anjos,
que guiariam os motoristas,
que guardariam os meninos,
que eliminariam os crimes e desmandos,
que concederiam bem mais que arroz a todos

e todos seriam felizes?

21 dezembro 2013

In Loco

Enterro meus pés nesta areia movediça
atrás de uma saída;
contradito-me uma vez após outra,
acreditando que um dia a água mole irá furar a rocha levantada 
                                            [no caminho da emoção

Acredito – meu conforto -
fora de mim os pássaros cantam,
as estações se sucedem,
dias e noites ainda – sempre – disputam um lugar na abóbada
– mesmo que o azul seja coberto por cinzas

Agora, com os pés, tateio caminhos escuros,
escusas vias
que por serem vias para algum lugar levarão.

Essa a esperança:
um lugar
físico,
temporal,
emocional
Um lugar – um caminho – uma saída
Ignoro que é aqui e agora esse loco?
Mesmo com toda vida – oportunidade
procuro sempre o específico
caminho individual de felicidade.
(2009)

23 novembro 2013

Quem é o dono da mala?

Chegou em casa e encontrou no canto do seu quarto uma mala de tamanho médio, alça retrátil, toda preta com zíperes amarelos. Achou até que havia chegado algum parente de surpresa. Perguntou a todos da família que mala era aquela e de quem era a mala, mas ninguém soube dizer. Deduziu que quem havia deixado a mala ali era a empregada, que já havia ido embora.
No dia seguinte a resposta: “Veio um menino aqui entregar. Disse que a senhora deixou para consertar e que o dono da loja pediu para deixar aqui”. Ela ainda arrematou que estranhou porque nunca tinha visto aquela mala.
Mas a mala não era dela. A empregada não havia perguntado ao menino de que loja veio a mala e não havia qualquer informação, um papel, uma nota fiscal, nada, que pudesse indicar a origem da mala.
Resolvida a não querer aquela mala dentro de sua casa, decidiu descobrir o dono. Viu que havia um cartão de identificação com um nome escrito. Sabino! Só Sabino, mas já era um começo. Foi ao computador e vasculhou Sabinos pelas redondezas. Localizou um Sabino no bloco “J”, e ela morava no bloco “I”. Deduziu então que tinham confundido as duas letras manuscritas no cartão.
Anotou o endereço e foi até o bloco “J”, apartamento 213. Tocou a campainha e quem abriu a porta foi uma senhora de aparência pouco amigável. Pediu desculpas por ter ido até lá àquela hora e explicou a situação, mostrando a mala, depois de identificar a mulher como sendo a senhora Sabino.
“Tá pensando que sou trouxa, é? Gritou a mulher, ainda na porta da sala. Que história de mala é essa minha filha. O Gilson anda por aí com suas periguetes, esquece roupas e malas pelo caminho, e você ainda vem com uma história de conserto de mala?”
Puxou a mala para perto dela e bateu a porta sem dar tempo para qualquer reação. Certa que havia se livrado de um transtorno, voltou para casa e tentou esquecer o ocorrido. Antes do almoço, a campainha tocou insistentemente. Ao atender deu de cara com a senhora Sabino e um senhor ao lado, que depois soube ser o Gilson Sabino, e a mala.
“Ela veio lhe pedir desculpas”, adiantou-se ele. “Foi um grande mal entendido, porque esta mala não é minha e peço que a aceite de volta, para devolver ao verdadeiro dono ou à loja de consertos”.
Surpresa com a situação, insistiu que não ficaria com a mala, porque também não era dela e não queria se responsabilizar pelo objeto. Mas a cada argumento que apresentava, a mulher ficava mais nervosa e por fim passou a gritar dizendo que seu marido não era um mentiroso
“Você está querendo denegrir a vida dele. Me fez pensar que ele estava tendo um caso com você”, gritava a senhora Sabino, citando situações folhetinescas, absurdas, fora de qualquer lógica.
Quando a situação estava no limite máximo de surrealismo, apareceu um menino de olhos arregalados, ofegante por ter subido quatro andares de escada e que esboçou um grande sorriso ao olhar para a mala. Olhou para cada um de nós, pediu desculpas, e disse que estava ali porque o seu Antônio pediu para que ele levasse a mala de volta, antes que perdesse o emprego e a cabeça. “Foi isso mesmo que ele me disse”, reforçou. "Posso levar?"
CLARO!!!! Falaram os três ao mesmo tempo.
“Obrigado dona, e desculpa aí ter interrompido a prosa de vocês. Bom dia”, disse saltitante o menino. “Acho que vou descer de elevador, porque tô muito cansado”.
“Espera aí, nós vamos junto com você”, disse a senhora Sabino, entrando no elevador puxando o marido pela mão.

03 outubro 2013

Já era, tempo!

O que eu sempre temia era conhecer do tempo seu caminhar                                                   [implacável,
seu ritmo permanente com ar de perene andança
e sempre e sempre em frente.
O que eu não via era que o tempo não espera na próxima esquina
nem tem mãos
- para puxar ou buscar quem se abisma ou se perde pelos túneis                                             [de ar.
O que eu não sabia era que o tempo é invisível como o mais                                                 [genuíno fantasma,
é incontável, apesar de todos os relógios e de todos os                                             [esforços para decifrá-lo,
e é incansável no seu persistente percurso

Invisível, inodoro, sem sabor, sem sensações captáveis pelos                                             [sentidos conhecidos,
o tempo simplesmente passa por nós,
passa por todos,
revolve as poeiras, as penas, as saliências,
revira estruturas, desfaz penteados,
se faz perceptível sem se revelar.

Imensurável, o tempo se deixa contar pelos sinais que deixa                                                [pelo caminho
- às vezes é um arrepio, outras uma pontada no peito
ou simplesmente um olhar perdido,
um sonho no meio da noite,
uma ruga no canto do olho,
a satisfação de uma ideia realizada,
a despedida de um amigo,
a chegada de outros.

O tempo não é o tic-tac dos relógios!
(07.06.2013)

17 agosto 2013

[ ... ]

Estamos em silêncio assim faz muito tempo,
brincando de ser gente grande,
engolindo o choro dos aflitos.

Estamos em silêncio de nossos próprios gritos
e deixamos para o dia seguinte a resposta mais arrojada.

Vivemos em um silêncio incriminador,
de um jeito que vai matando aos poucos
os sonhos e as escaladas,
que vai desmoronando as beiradas dos precipícios
tornando mais perto o fim.

Viveremos em silêncio assim até que
o último grito escape
a caminho do poço.

Silêncio, enfim!

10 agosto 2013

Esses olhos

Feliz Dia dos Pais!
Olho teus olhos com respeito,
tentando adivinhar o que já viram,
ou não viram.

(Que sonhos se esvaíram por esse olhar
para deixá-lo tão espichado
como se perseguisse o arco-íris sem querer perdê-lo de vista?
Quais sonhos ainda restam nessas retinas de camufladas espiadelas?)

Os olhos que já viram tanto,
que espiaram muros e buracos de fechaduras,
expiam hoje a ausência do ser amado
Os olhos, esses olhos,
já olharam de frente, já se abaixaram,
já se arregalaram, já choraram,
já avistaram longe e se fecharam.
Os olhos, esses de pálpebras caídas,
devem mesmo estar cansados de tanto deixar escapar sonhos e perceber tormentos
Os olhos - esses mesmos -, cansados,
ainda soltam uma lágrima de definitiva saudade

(05-05-2012)

10 julho 2013

Descolado

Arrancou o adesivo que estava colado na sua pele. Jogou o mais longe que pode desejando criar uma barreira entre ele e o grupo que o cercava. Como num passe de mágica, um círculo de fogo surgiu. E ele no meio. Cavaleiro isolado dos inimigos por outro inimigo. Ficou ali pensando em um modo de escapar...

Ou:
Arrancou o adesivo que estava colado no seu braço e gritou "ai". Estava bem colado aquele adesivo e o sangue ainda saía um pouco pelo buraquinho feito pela agulha que lhe tirou sangue. Era bonitinho o adesivo. Um band-aid do tipo infantil ilustrado com cores e com um personagem de contos de fada. Resolveu então colar no seu caderno de adesivos. Seria o primeiro da coleção que conteria seu próprio sangue. Macabra esta história.

Ou:
Arrancou o adesivo que há dias estava no seu braço, com as bordas sujas e já descolando. Disse um "ai" fraco, só pra não perde o hábito, e foi brincar. Largou aquele resto de curativo no chão do quarto e ninguém recolheu aquele lixo durante todo o dia. À tardinha, depois de voltar das brincadeiras, achou que podia usar de novo em novo machucado. Só desistiu porque não colava mais. E largou de novo no chão. Nem o cachorro quis pegar. 

Ou:
Apenas arrancou o adesivo que estava colado nas suas ideias.

02 julho 2013

Estrela cadente

Quantos poemas num poema!
Fonemas, morfemas 
- leves falenas que levam velhas tardes para um encontro
Novos dias?
Disseram que seriam novos os dias, disseram que seriam dias.
Não há novo nestes dias
Não há velho naquelas tarde
Nada há que não tenha sido e que ainda será
Então, 
o vermelho vira verde na estrela
camuflada;
a estrela vira risca de giz no terno engomado 
(2006)

Observações diárias

Muitas vezes não precisamos nem sair de casa para encontrar estímulo e inspiração para escrever o texto do dia. Podemos olhar pela janela e avistar aquele senhor que todo dia passa na calçada, na mesma hora, pisando a mesma trilha e que gosta de parar somente quando passa alguém com uma criança ou para acariciar um cachorro. Ficamos pensando naquela queda de bicicleta que o filho do vizinho sofreu na última semana e de todo o nervosismo da mãe quando ouviu os gritos do menino. Só aí já temos uma crônica, com reminiscências, é claro, mas uma crônica.
O idoso que todo dia passa me lembra da figura do querido sogro que até há menos de três anos morava na nossa casa. Ele fazia uma caminhada todos os dias e, até onde eu sei, parava para cumprimentar crianças e adultos, para comentar sobre algum cachorrinho pelo caminho, para agradecer aos motoristas que permitiam que ele atravessasse na faixa de pedestre com segurança. Depois do café da manhã, diariamente, descia para andar. Creio que havia quem aguardasse sua passagem por aquele mesmo caminho, assim como nos acostumamos a ver outros idosos passarem pela calçada quase sempre no mesmo horário.
E a queda de bicicleta resgata outra reminiscência, esta diretamente relacionada à minha infância. Em um quente domingo de um verão no Sul do país, resolvi sair de bicicleta pelas ruas da vila em que morava. Era a famosa hora da sesta, quando pais e mães dormiam depois de um almoço farto, com ventiladores ligados e um radinho no canto com um locutor gritando os gols dos jogos de domingo. Enjoada com este tédio de uma tarde dominical, peguei minha bicicleta na garagem e sai. Subia e descia a rua que não tinha calçamento. Era só terra, pedras e poeira. Acho que foi no momento em que virei a cabeça para o lado, a fim de ver o rastro de poeira, que a roda da bicicleta passou sobre uma pedra mais elevada. Lá fui eu para o chão. Assustada, comecei a gritar, ou chorar, não me lembro mais. Como não havia ninguém à vista, pois deviam estar todos dormindo que nem os meus pais, fiquei ali sob o sol das duas da tarde, com uma perna presa entre uma pedra e a bicicleta. Fui puxando devagar a perna e sentia que aumentava a dor na pele, que ficava mais arranhada devido ao peso da bicicleta sobre uma perna de criança. Rastejava chorando, me sentindo abandonada e insegura. Até que consegui sair debaixo da bicicleta com o alívio de quem sai debaixo de um trem. Neste momento apareceu um vizinho que veio me socorrer. Com a pergunta de sempre – “machucou? –, me ajudou a andar até o portão da minha casa, enquanto carregava a bicicleta. Entrei em casa chorando para desespero da minha mãe. A perna não sangrava tanto quanto doía e doeu mais ainda na hora do curativo materno. A dor maior veio depois, quando me vi impedida de andar de bicicleta no próximo final de semana e tive que ficar na sala ouvindo o insuportável som de um rádio no canto da sala exalando os gritos do locutor que transmitia o jogo de futebol de mais um domingo.

30 junho 2013

Por que demorou pra atender?

O telefone toca no meio da noite.
Primeiro o toque se mistura a um sonho em andamento. Depois, o som se sobressai no silêncio. Quem será a esta hora? E que horas serão? Levanto correndo da cama enquanto acendo a luz do relógio na cabeceira. 2:38! Ai, quem será? Misturam-se suposições desencontradas. Morreu alguém da família, pode ser o vizinho do andar de cima reclamando de alguma coisa - afinal ele reclama de tudo. Mas reclamar de quê no meio da noite?
Vou ao local onde fica o telefone - pelo menos deveria ficar -, mas ele não estava na base. Mais uma vez os meninos usaram o telefone e deixaram em outro lugar. E continua tocando. Tateando as paredes vou até à sala, pois era de lá que vinha o som. E lá estava ele acendendo a luzinha vermelha e tocando alto. Alô, digo logo ao atender. Do outro lado, uma voz masculina pergunta: É você Lúcia? Por que demorou pra atender?
Tinha uma voz de bêbado o interlocutor. Começou a falar alto, brigando com a coitada da Lúcia. Quando surgiu um intervalo também gritei: O senhor ligou errado. Aqui não mora nenhuma Lúcia. Desliguei. Mas em seguida ele ligou de novo. Não consegui entender como é que uma pessoa embriagada consegue discar duas vezes o mesmo número errado. Vi então pelo visor do telefone a resposta para a minha dúvida insignificante depois do susto no meio da noite. O número que aparecia na Bina era de um celular. Ele discou errado uma vez e rediscou uma, duas, três vezes. Na segunda vez já havia acordado o resto da família. O jeito foi desligar o cabo do telefone.
Voltar a dormir? Tentei. Mas ainda estava com a adrenalina a mil. Já passava das 4 horas quando desisti de dormir e resolvi descrever esta minha madrugada.

03 junho 2013

O tempo

Olhava fixamente para o relógio para não perder o movimento do ponteiro dos segundos. E começava a contar os segundos, de cinco em cinco, confirmando a cada quinta batida se a haste coincidia com o pontinho do mostrador do relógio. Ficava assim por alguns minutos, vendo o tempo passar. Tinha satisfação nessa atitude, pois se sentia senhora do tempo, com consciência plena de que realmente estava vendo o tempo passar, materializado naquele bater ritmado do ponteiro dos segundos.
O que é o tempo? Pensava nisso sempre que começava a contar os cinco segundos depois de outros tantos cinco segundos. E respondia para si mesma: o tempo é uma sucessão de cinco segundos. O tempo não é nada se os relógios não existirem. O tempo não é o relógio. Pensava tanto que acabava perdendo a contagem dos cinco segundos. Deixava então o ponteiro coincidir com um dos pontinhos do mostrador e reiniciava a contagem.
Às vezes ficava com raiva de suas manias; desta mania especificamente. Para que contar os segundos? Levantava de onde estava e deitava o relógio, mostrador contra o tampo da mesa. Mas, já no ritmo dos ponteiros, começava a contar de cinco em cinco só de ouvir as batidas. Nada mais adiantava, pensou quando de noite, no escuro, olhos buscando faíscas no breu, imaginava um enorme relógio suspenso acima da cama, com ponteiros luminosos. Pensava no relógio que marcava a passagem do tempo na história do Ziraldo “O Menino Maluquinho”, e se embalava naquele mostrador, como se fosse um balanço gigante. Balanço ritmado, tic-tac para cada lado, norte, sul, leste, oeste, pra cima, pra baixo, de um lado pro outro interminavelmente.
De manhã, acordava cansada, com o tempo passado estampado em seus olhos avermelhados, nas pupilas dilatadas, na musculatura adormecida. Sentia-se como se tivesse vivido dez anos durante uma única noite. E a cada noite sentia-se mais velha, como se o tempo estivesse pesando sobre seus ombros. Quando se olhava no espelho chegava a se enxergar envelhecida, pele enrugada, olhos caídos e inchados. E do lado o infindável tic-tac a comandar-lhe os movimentos, a lhe tomar o tempo, a lhe roubar a juventude a cada segundo. (03-06-2010)


29 março 2013

Sonhos

Andava por aquelas ruas empoeiradas com muita desenvoltura. Apesar de todas as recomendações da mãe, sobre supostos perigos escondidos pelas pedras do caminho, não tinha medo. Não sabia por que ter medo. Afinal, criança ainda, temia alguma coisa, mas tinha o espírito aventureiro de toda criança na sua idade. Dez, 12, nem tão criança, meio pré-adolescente, com vontade de ser adulta. Mas o que incomodava naquele momento não eram os conselhos da mãe e sim a poeira que habitava aquele lugar.
No silêncio do começo da tarde, de um domingo qualquer há décadas, sabia que carregava atrás de si um rastro de poeira. Imaginava um microrredemoinho se formando toda vez que dava um passo e levantava um pé do chão. Poeira envolta em poeira, uma sequência de redemoinhos seguindo seus pés, crescendo, crescendo, até seguir a sua frente já visível. Andava de um lado para outro, procurando amigos depois do almoço de domingo, mas não havia nenhum amigo à vista. Provavelmente se renderam aos cuidados das suas mães. Vai ver são mais temerosas que a sua mãe, pensou, por isso não saiu ninguém depois do almoço. Vai ver não gostam de poeira, e de sol, e querem tirar um cochilo para brincar mais tarde.
Atravessou a rua pela centésima vez. Da sua casa até o portão da casa em frente. E daí seguiu para o portão ao lado da sua casa e desta para o outro lado, transversalmente, até acabar a rua. Não que a rua fosse longa, mas seguindo assim em ziguezague multiplicava-se por 20, porque havia 10 casas de cada lado da rua. E assim foi passando seu tempo, pra lá e prá cá, somando, multiplicando, olhando os números pregados nas paredes de cada casa. Em uma delas havia três pássaros de cerâmica colados ao lado do número; em outra, um vaso com uma samambaia enorme, quase arrastando no chão. Minha mãe não gosta desta planta, pensou, porque disse que solta muita folha e dá trabalho para manter o chão limpo. Avistou ainda uma parede num tom verde tão forte que parecia uma floresta. Parecia, porque na verdade nem sabia como era uma floresta. Mas a professora havia falado que era toda verde. Então deve ser do jeito dessa parede.
Estava cansada, mas achava divertido ficar de um lado para outro na rua, passando o tempo. Olhava cada detalhe das casas. As cores, as texturas das paredes (nem sabia o que era textura, mas via que algumas paredes eram diferentes de outras, então também observava isso). Um vizinho, por exemplo, colou na parede de frente da casa umas tiras de madeira, deixando a parede listrada, muito engraçada. Outro pintou a parede com muita tinta e deixou a tinta crespa, cheia de pontas. Era muito ruim brincar naquela casa porque a parede machucava quem se encostasse nela. A vizinha do lado da sua casa fez uma colagem na parede, com um monte de pastilhas que foi pegando pelas ruas durante anos de sua vida. Foi o que ela contou quando as crianças perguntaram.
Então, depois de atravessar diversas vezes a mesma rua e ficar olhando as paredes de cada casa a sua frente, começou a andar no meio da rua observando poeira, pedra e outras coisas pelo caminho. Os pequenos redemoinhos continuavam a persegui-la, tinha certeza, porque sentia uma brisa nos calcanhares e uma aspereza entre o chinelo e os pés. De vez em quando sentia também umas pedrinhas entre os dedos, ou debaixo dos pés. Quanto incômodo para seus pés. Foi até o fim da rua e voltou. Neste momento sentiu outro elemento que até então não a tinha incomodado, porque estava nublado: o sol. Com o vento aumentando, as nuvens se dissiparam e o sol bateu de frente assim que fez a volta na rua. Não se sentia à vontade, não por causa do calor, mas porque o sol a impedia de abrir os olhos para continuar vasculhando o caminho. Olhou em volta e não viu solução, porque nem árvore havia na rua ou na calçada. Correu para casa, carregando atrás de si um rastro de poeira tão grande como não havia visto ainda naquela tarde. Entrou em casa com os pés sujos de terra e ouviu a reclamação da mãe. Voltou até o tapete do lado de fora da porta e deixou ali seus chinelos. Como não encontrou ninguém para brincar e não havia mais o que fazer, deitou para tirar um cochilo. Acordou com os amigos chamando do lado de fora da janela, reclamando porque só ela não estava na rua com eles por dormir demais. Ao mesmo tempo, ouviu a mãe chamando para que fosse almoçar, dizendo que o almoço já estava frio, pois ela dormia desde as 11h da manhã. 
(03.06.12)

23 março 2013

Tristeza de escrever


"Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
Por isso a palavra escrita é sempre triste..."

Mário Quintana

Apontamentos de História Sobrenatural

05 março 2013

03 março 2013

Uma pasta de lembranças

Assim que entrei naquela loja, especializada em bolsas, malas e outros objetos confeccionados em couro, um determinado cheiro trouxe-me de volta à lembrança minha primeira pasta escolar. Marronzinha, com duas fivelas que fechavam uma aba larga por cima da abertura, uma alça confortável para minhas mãos de seis anos de idade, a pastinha tinha um cheiro inconfundível. Tinha também barulhos que até então não conhecia, como o som dos lápis de cor batendo uns nos outros, soltinhos dentro da pasta.
O inesquecível cheiro da pasta detonou imediatamente uma sequência de recordações que me arremessaram para o meu primeiro dia de aula, quando a pasta desempenhou seu papel de coadjuvante. Revi as cenas daquele dia como se estivesse assistindo a um filme de ficção.
Cena 1 – Com a pasta marrom na mão esquerda, a mão direita segurando firme no corrimão de madeira de lei da escada em curva, a recém-chegada aluna sobe para o segundo andar, integrando uma fila de também novos alunos ansiosos por ingressar na nova etapa de suas vidas. Se a câmera buscar um close da menina vai registrar sua respiração ofegante, uma gotinha de lágrima nos cantos dos olhos, as mãos suadas deixando marcas no corrimão.
Cena 2 – A menina tem sua primeira visão da sala de aula: é enorme, dirá mais tarde em casa, para os pais. Toda branca, janelas gigantescas pintadas de verde-claro, mesas coladas nas cadeiras, que chamam de carteiras, um enorme quadro verde, que chamam de quadro-negro, e um monte de giz e apagador sobre uma escrivaninha que serve de mesa da professora.
Cena 3 – A professora pede para os alunos pegarem caderno, lápis e borracha e a menina, pela primeira vez, abre a pasta para usar seu material escolar. Ela acha que foi neste momento que sentiu mais forte o cheiro inconfundível da pasta, porque estava sentada e, para abrir a pasta, teve que colocá-la sobre as pernas o passar a aba perto do nariz para virá-la para trás e tirar o caderno, o lápis e a borracha. Foi quando percebeu também que a parte de dentro do couro não era lisa como a parte de fora. Ainda se deteve por um ou dois segundos passando a ponta do dedo indicador da mão direita no material e teve tempo de lembrar que era igual a uma bota da sua irmã.
Cena 4 – A professora mostra, pela primeira vez, sua autoridade, perguntando alto se todos já estavam com o material sobre as carteiras. Ela fechou a pasta rapidamente e a colocou embaixo da mesa. Já sabia que havia um local para colocar material sob a mesa, porque já batera um dos joelhos na madeira.
Cena 5 – A vendedora da loja pergunta: “Posso ajudá-la? Procura bolsa ou pasta?”, e toda a sequência em flashback é substituída por uma cena do presente.
Cena 6 – A menina, já adulta, agradece, pede desculpas à vendedora e sai da loja ainda sentindo o cheirinho da antiga pasta. (2006)

27 janeiro 2013

Márcia e os potes de sorvete

Estava para jogar fora um pote vazio de sorvete e me lembrei de Márcia. Mulher de pequena estatura, pele morena, olhos puxados - aquela mistura bem brasileira de índio, negro e europeu. Dentro de um supermercado, ela passaria por uma cliente qualquer, bisbilhotando as prateleiras de produtos de limpeza. Quando passei por ela, mesmo com pressa, acabei parando para ouvir melhor o que ela falava, porque me pareceu que falava comigo. Na verdade não falava comigo, mas estava tão admirada com um recipiente de plástico branco, transparente, que falava em voz alta. “Que jarra de água linda!”, ouvi ao passar por ela, “mas é muito cara!”, exclamou em seguida. Foi aí que transformei aquele monólogo em um diálogo, comentando que não se tratava de uma jarra de água. A um metro de distância da peça eu li no rótulo que aquilo era um porta-sabão em pó e revelei isso a ela, acrescentando que não entendia para que comprar uma coisa daquelas, se sabão a gente colocava em qualquer pote de sorvete. Pronto! Foi como se tivesse puxado a cordinha de uma boneca tagarela.
Ela começou a contar, sem parar, a história da sua vida assim que chegara a Brasília. Veio do interior do Maranhão, sozinha, há uns 10 ou 15 anos, para trabalhar como empregada doméstica. Não conhecia nada da sociedade de consumo e qualquer pote de sorvete para ela era valioso, tanto que a patroa, na primeira semana de trabalho, juntou vários desses recipientes em uma bacia grande e deixou na área de serviço para que ela jogasse fora. “Ai, meu Deus, que vergonha que eu passei; lavei todos os potinhos com o maior cuidado e guardei tudo nos armários da cozinha”, lembrou-se Márcia. Vergonha porque, conforme explicou, ela não havia entendido que aqueles potes e a bacia eram lixo. “Comecei a ver as pessoas desperdiçando coisas, jogando tudo fora, mas eu não podia guardar porque morava na casa da dona Vilma, até o dia em que eu arrumei um quartinho para morar e comecei a ganhar aquilo tudo”, relatou ainda.
Pelo relato que fez, nós duas em pé no meio do corredor do supermercado, Márcia montou uma casa dos sonhos. Não tinha nada a não ser um monte de potes de sorvete, bacias velhas, panelas que ninguém mais queria; mesas e cadeiras que os vizinhos iam jogando fora. Especializou-se em recuperar esses objetos. “Meu quartinho era um cantinho especial, com todo muito limpo e bem arrumado”, conta ainda. Neste momento, arregalou os olhos e revelou um momento de sorte em sua vida: um dia, ao atravessar a rua onde morava, viu um vizinho carregando um fogão para o lixão da vizinhança. Correu até ele e perguntou para onde ele estava levando o fogão, já imaginando a resposta. Resultado: ganhou o fogão e o frete até o seu quartinho.

“Eu não posso reclamar da minha vida, porque acho que sempre tive muita sorte, apesar de ser pobre”, disse Márcia. Eu começava a me incomodar com o tempo da conversa, pois percebi que ela usava um uniforme de uma firma de contratação de mão de obra de limpeza. Ela era funcionária do supermercado e estava ali, no meio da manhã, falando da sua vida. Mas ela não estava preocupada. “É, já vou, mas deixa eu contar o melhor momento da minha vida, depois eu vou trabalhar”, disse. Contou então que depois de alguns anos conseguiu um emprego melhor e mudou-se para um “barraco”, com quarto, sala, cozinha e banheiro. Então trouxe o filho para morar com ela, que até então vivia com a avó, no Maranhão. Levou todos os seus objetos preciosos, do fogão aos potes de sorvete, e resolveu então juntar dinheiro para comprar uma geladeira, que seria a primeira de sua vida.
“Você não sabe a emoção que eu senti quando entrei em uma loja e paguei minha geladeira à vista”, declarou com os olhos cheios d’água. “Juntei o dinheiro mês a mês e ia olhando aqueles folhetos que as lojas distribuem com promoções, até que um dia eu vi que tinha o dinheiro para comprar uma geladeira que estava anunciada”, narrou. Ela disse que ainda se lembra de toda a cena, ela entrando na loja, o dinheiro na bolsa, o vendedor perguntando o que ela queria, ela escolhendo -“eu quero essa” - e o vendedor querendo saber em quantas parcelas ela iria fazer o pagamento, e ela dizendo que pagaria à vista. “Eu ria tanto que a moça do caixa começou a rir também, sem nem saber o motivo, mas eu estava tão feliz que contei para ela, que tinha vivido com dificuldades, morei num quartinho, longe do meu filho, e que meu sonho era comprar uma geladeira e pagar à vista”, contou. 
Riu mais alguns dias, e riu ainda de felicidade contando essa história, e riu também quando a geladeira chegou e ela foi colocando os potes de sorvete dentro dela, cheios de alimentos que até então não podia guardar por muito tempo. “Minha casa agora estava completa”, disse Márcia, “e tudo muito limpinho, arrumadinho, como uma casa de princesa”. Um dia ela comprou também um fogão novo e deu aquele que ganhara para uma amiga recém-chegada a Brasília, na mesma situação que ela enfrentou quando veio do Maranhão. “E falei pra ela cuidar bem do fogão, ensinei a usar os potes que as patroas querem jogar fora e disse que é só a gente ser cuidadosa e bem limpa que a casa fica linda”, ditou Márcia. 
Antes de se despedir, ela ainda lembrou-se do dia que comprou o seu primeiro pote de sorvete, tomou o sorvete com o filho, até que acabou. Esse pote é outro objeto especial na casa de Márcia, assim como a geladeira, e como foram o fogão e os demais potes que ganhou. 
“Agora, imagina usar uma jarra de água linda dessas aqui para guardar sabão? Usa um pote de sorvete e pronto”, finalizou a caminho do local de trabalho. (13.03.2010)