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14 novembro 2007

Minha mãe é uma criança

Integra Coletânea do Prêmio Sesc de Contos Infantis/2007

E
u acho que minha mãe está meio maluquinha. Anda com umas idéias que nem eu, que sou criança ainda, penso assim. Sabe o que ela me disse um dia desses, na hora do almoço, quando meu pai pediu o paliteiro e não havia palito dentro? Ela levantou e disse: “Vou lá na horta pegar uns palitos, porque eles já devem estar maduros hoje”. Como é que pode, achar que palito de dente é plantado em horta? Eu fui lá e olhei por todo lado e não vi nada parecido com palito. Pra falar a verdade, tem uma árvore com uns palitinhos nos galhos, mas eles machucam. Eu até achei que minha mãe tinha razão quando vi esses palitinhos, mas depois, vendo bem de perto, vi que não eram a mesma coisa que os palitos do paliteiro. Arranquei um da árvore e machuquei meu dedo. Foi aí que eu vi que não era igual e pensei, se machuca o dedo, que dirá uma gengiva?

O mais estranho é que minha mãe foi lá na horta e voltou com o paliteiro cheio, e não eram aqueles palitinhos da árvore que eu vi. Eram palitos de verdade. Eu não sei de onde ela tirou, mas ela disse que foi da horta sim e que o pé de palito está lá para qualquer um ver. Mas ela é cabeça dura e não quer ir lá comigo para me mostrar qual é o pé de palito. “Só quando o paliteiro se esvaziar de novo”, ela disse. Mas eu acho que ela vai dar um jeitinho dele nunca mais ficar vazio só para eu não conhecer o pé de palitos.

Mas essa história de pé de palito não foi nada. Pior foi o que ela disse hoje, quando resolveu varrer a varanda lá fora. Foi juntando o lixinho, com um monte de pêlo do nosso cachorro labrador, e disse que vai começar a guardar os pêlos porque com eles vai fazer um novo cachorro, igualzinho ao nosso. Ah, isso não! Ela começou a guardar os pêlos dentro de uma caixa de sapatos. Ela garante que, quando encher a caixa, faz um montinho, vai arrumando daqui, arrumando dali e faz um cachorro. Minha mãe disse que ele vai ser pequeno, porque ainda vai ser filhote, mas ela garantiu que ele vai crescer que nem o outro e vai ficar grandão, adulto, bonitão. Eu disse que não acreditava nisso e ela me lembrou da história do elefante do Carlos Drummond de Andrade, um poeta que também tinha umas idéias assim assim. Ela leu esse livrinho para mim e lá tem mesmo um elefante criado com restos de pano, costurados, tudo remendado. Ah, esse pobre cachorro vai ser um monstrinho. Vou esperar chegar esse dia. A caixa vai encher rapidinho, porque ele solta muito pêlo e todo dia minha mãe varre lá fora. Às vezes varre mais de uma vez (ela deve estar com pressa de fazer o cachorrinho).

Minha mãe tem cada idéia deste tipo que eu fico imaginando se ela pensa que eu sou bobinha e que eu acredito em tudo que ela diz. Ela até fala com biscoitos. Pode ser biscoito doce ou salgado. Ela olha para ele, bem séria, e pede desculpas. Aí ela come o biscoito. Minha mãe gosta de uma mistura nojenta, de biscoito doce com leite. Ela coloca tudo num copo e faz uma papinha, que ela come com uma colher. Mas antes dela comer, antes mesmo dos biscoitos ficarem molinhos no leite, ela bate aquele papo com os biscoitos. Fica dizendo que não queria afogá-los, que eles têm que desculpar sua fome, que o leite é bom também para eles. Um dia ela começou a chorar na frente do copo e eu fui fazer um carinho nela. Ela me olhou e disse: “Coitados dos biscoitos, filha, eles estão se afogando”, e continuou chorando. Depois comeu tudo, que nem criança.

Por falar nisto, ela gosta de usar uma colherinha pequena, do tamanho da colherinha que eu uso para comer. Ela disse que é bom comer doces e os biscoitos no leite com colher pequena porque assim demora mais para acabar e ela pode aproveitar mais tempo o que está comendo. Ah, mamãe! Como você é boba, já disse algumas vezes para ela. Ela riu para mim e me deu uns beijos.

Ela pensa até que boneca fala e chora e que entende a gente. Sempre que eu estou brincando ela vem e pega minha boneca e fica falando com ela, imitando voz de bebezinho, e insiste que ela fale comigo e eu com ela. Eu já expliquei para ela que boneca não fala. Que boneca é só boneca e a gente brinca com ela. Pra isso é que servem as bonecas. A gente é que fala e chora e entende as coisas. Não as bonecas. Mas minha mãe fica com aquela vozinha falsa de bebê, e me olha querendo que eu também fale daquele jeito. Às vezes eu penso que minha mãe voltou a ser criança ou então que ela não teve tempo de brincar quando era pequena e agora resolveu brincar. Tadinha dela.

Outra coisa. Ela fala com as plantas e coloca música para as plantas ouvirem. E ela está certa que elas gostam, que até se balançam com a música. Ela também é apaixonada pela lua e diz, toda feliz, que não é todo mundo que tem uma palmeira imperial com uma lua atrás, que nem a gente tem na frente da nossa casa. Como se a lua viesse grudada na palmeira. É ela que se coloca na frente da palmeira só para ver a lua lá atrás, no meio daquelas folhas enormes.

Bem, minha mãe é assim mesmo. Cheia de gracinhas e mentirinhas. Ela acha que eu acredito e eu finjo que acredito só porque assim eu acho que ela fica feliz. Eu acho que ela sabe que eu estou fingindo, afinal, mãe sabe sempre tudo e não é possível que não saiba que eu sei que ela está inventando um montão de histórias só para me distrair. Claro que às vezes eu fico assim, meio preocupada, porque ela pode estar ficando maluquinha de verdade. Mas estar maluquinha não deve ser tão ruim, pois já li um livro daquele outro maluquinho, o menino criado pelo Ziraldo, que eu gosto muito. E eu me lembro que no final, depois que o Menino Maluquinho cresceu, chegaram à conclusão que ele não era um menino maluquinho, mas era apenas um menino feliz. Acho que a minha mãe é assim. É feliz. É uma menina feliz. E aí eu fico feliz também.

10 novembro 2007

Fantasias

Minha filha de 12 anos foi convidada para uma festa à fantasia. Achei estranho haver uma festa desse tipo em pleno mês de novembro. “Não é festa de Halloween?”, perguntei, e ela disse que não, que seria mesmo uma “festa festa” e que todos teriam que ir vestidos com uma fantasia.
Então procuramos uma loja que vendesse a roupa. Para minha surpresa, havia várias lojas especializadas em fantasias, cada uma com dezenas de fantasias, de todos os tipos e tamanhos, e que não só vendiam, mas principalmente alugavam as tais fantasias. Para minha surpresa ainda maior, a loja que escolhemos, por ser mais próxima de nossa casa, estava lotada de adultos e adolescentes comprando fantasias o que significava – e eu mais surpresa ainda! – que haveria outras festas à fantasia naquele final de semana. “Alugar sai mais em conta, porque o preço para comprar é três vezes maior que o preço do aluguel”, explicou uma vendedora.


Era um sábado e a loja fechava às 14h. É claro que já estava chegando o meio-dia e a loja foi ficando cada vez mais lotada de clientes de última hora. Uma família inteira tentou se encaixar em um conjunto de fantasias que não consegui identificar o que significavam: pareciam plantas, gnomos, troncos de árvores. Tinham afinidade, porém. Outra freguesa quis uma coroa de princesa e saiu com a que achou mais linda e de aluguel mais barato. E a "Mulher-Gato" veio cobrar as orelhinhas que estavam faltando na fantasia que alugara.
Não há mais fantasia de grego”, disse a vendedora para um rapaz que entrou na loja com a namorada, a amiga da namorada e mais uma criança. “Como não há mais?”, disse o freguês surpreso. “É que está havendo uma festa de gregos e troianos e tudo já foi alugado”, respondeu.
Festa de gregos e troianos, que coisa incrível. Daqui a pouco chegou outro grupo procurando fantasias para uma festa de McDonalds. Fiquei esperando uma resposta negativa da vendedora, mas muitas surpresas ainda me aguardavam. Lá estavam as fantasias de “big mac”, “batata frita”, “copo de refrigerante”, “sorvete”, “canudo”, “torta de banana” e até o novíssimo sanduíche com molho de mel e mostarda. Atordoada, cheguei a ficar aliviada por saber que minha filha desejava uma simples fantasia de “mamãe Noel”.
Mamãe Noel de vestido ou de saia?”, perguntou a vendedora. Trouxe as opções que encontrou. Peças enormes, que engoliram minha filha. “É só escolher que a costureira faz os ajustes”, explicava a vendedora que conseguia a proeza de se multiplicar dentre as dezenas de peças penduradas em inúmeros cabides dentro da loja e desse meio surgia a todo o momento.
Confesso que aquela montoeira de roupa e gente e conversa causou-me um desconforto ampliado pela falta de ventilação do lugar. Continuava esperando que a “Mamãe Noel” resolvesse o que vestir naquela noite, até que ela preferiu o vestido, que vinha acompanhado de luvas, saco de presentes (sem presentes, claro), cinto preto, gorro. “Vai querer meia arrastão vermelha ou meia-calça branca?”, ofereceu ainda a vendedora, como complementação ao pacote. “Não quero meia”, disse minha filha, manifestando o que lhe restava de bom-senso naquele ambiente.
Finalmente com o pacote de “Mamãe Noel” pronto, fui pagar o aluguel. A vendedora foi interrompida por um senhor que, acompanhado da filha, procurava “uma máscara para a festa da Rute”. A vendedora trouxe uma máscara no melhor estilo carnaval veneziano, branca, rendada, pela metade, o que significava que a metade do rosto ficaria à mostra. “É isso?”, disse o homem com ar de decepção. “É para o senhor?”, perguntou a vendedora sem responder. “Dizem que é”, respondeu o desencantado, certamente imaginando o quanto ficaria exposto na brincadeira do faz-de-conta.
Saímos da loja, eu e minha adolescente “Mamãe Noel”. Lá fora, sem fantasia, uma menina pedia esmola, sentada junto à vitrine da loja, de costas para um super-homem e uma odalisca.