Abri somente o olho
esquerdo e enxerguei meu nariz, pequeno, reto, sem defeitos. Imaginei como deve
ser a mesma visão de alguém que tenha um nariz disforme, ou adunco, ou grande demais.
Passou rapidamente este pensamento. Afinal, não tenho nada a ver com o nariz
dos outros. Tinha que levantar da cama, começar as tarefas. Tive vontade de
continuar assim, com o olho direito fechado, vendo o meu nariz como o único
horizonte possível. Estiquei as pernas para passar a preguiça, abri o outro
olho, olhei em volta e estranhei o silêncio. Silêncio! Silêncio!
Silênciooooooo.
- Sim, e daí? Por que é
que havia silêncio?
- Então. Não havia
silêncio, eu é que estava em silêncio.
Estranhei o MEU
silêncio. Tive a sensação de estar em outra dimensão. Não sentia nada em mim
além das pernas que havia esticado. E mesmo as pernas estavam em um silêncio
assustador. Geralmente, quando me espreguiço ao acordar, as pernas dão uns
estalos, os pés estalam e eu sinto o ruído do lençol sob meu corpo.
Ruído é ruído. Não é
barulho. Só a gente escuta. Mas nem isso eu ouvia. E meu nariz ali, reto,
pequeno, meu único horizonte antes de abrir o olho direito.
- Por que é mesmo que
não enxergamos o nariz duplamente com os dois olhos abertos?
- Eu não sei, mas
continua falando do “seu” silêncio.
Era assim como se eu
ainda não tivesse acordado e estivesse em um sonho, sem qualquer som. Sem sair
da cama, de barriga para cima (uma vez me disseram que esta posição se chama
decúbito dorsal. Que horror. Fui fazer um raio-X de abdômen, eu acho, e o
técnico pediu para eu ficar de decúbito dorsal. Na hora, ainda adolescente,
achei que iria sofrer uma agressão sexual. Ele deve ter percebido que eu
desconhecia aquilo e falou: deita de barriga para cima). Então, nessa posição,
comecei a movimentar as pernas para os lados e para o meio, para os lados e
para o meio, esperando ouvir o ruído das minhas pernas no lençol. Não ouvi
nada. E fiquei mais assustada quando percebi que também não sentia as minhas
pernas abrindo e fechando.
- Pronto, estava mesmo
em outra dimensão, pensei.
Comecei então a
movimentar os braços, a cabeça, o corpo todo, e não sentia, nem ouvia nada.
Bati até palmas, e não sentia e nem ouvia nada. O único dos cinco sentidos que
funcionava em mim era a visão, pois eu enxergava todos os movimentos que fazia.
Está certo que naquele
momento eu não tinha como comprovar o paladar e o olfato. O quarto estava
fechado, impedindo de sentir cheiros de fora; e eu ainda estava em jejum. Mas,
sim, deduzi que não tinha paladar também. Não sentia aquele gosto que desde
criança chamava de “gosto do acordar”. Então pronto, só restava mesmo a visão.
Não ouvir, não sentir
cheiros, sabores e o próprio corpo. Como seria minha vida daí pra frente,
pensei, e nem senti uma lágrima escorrendo pelo canto esquerdo do meu rosto. Só
vi que havia lágrima. Vi o olho embaçado, vi a visão turva. No primeiro momento
levei um susto.
- Pensei que também
estava deixando de enxergar.
Mas então,
instintivamente, eu passei a mão pelo olho e, mesmo sem sentir nada na mão,
limpei a lágrima do olho. Pronto, visão clara de novo.
- Sim, e quando foi
que tudo voltou ao normal? Porque você está aqui agora com todos os sentidos
recuperados.
- Ah, doutor, esse é
outro mistério que aconteceu naquele mesmo dia.
Eu não sei quanto
tempo fiquei ali naquela posição. Tive medo de levantar e, sem me sentir, cair
no chão e não conseguir mais levantar. Sabia que estava só em casa e não teria
a quem recorrer se caísse, se me machucasse. Então fiquei na cama. Via que me
mexia, parte por parte do corpo; abria os olhos, um depois o outro, e
continuava tendo o meu nariz como o único horizonte possível para mim naquela
situação. Ainda bem que o meu nariz tem um formato agradável. Passei a amar meu
nariz. Olhava para ele dos dois lados. Era tão perfeito com seus lados tão
iguais! Fiquei piscando: olho esquerdo – lá está o nariz; olho direito – olha
lá o nariz de novo. Fiquei nesse exercício de piscar incansavelmente, sem nem
sentir o movimento dos olhos, mas sabendo que estava piscando porque via meu
nariz de um lado, depois do outro. Descansava um pouco – descansar não, porque
se não sentia nada não tinha do que descansar. Mas piscava um pouco e parava.
Olhava pra frente, para os lados – virava a cabeça e era como se não fosse a
minha cabeça, mas virava – e voltava a piscar; tentava ver o nariz com os dois
olhos ao mesmo tempo e não conseguia – não sei mesmo porque não conseguimos ver
o nariz ao mesmo tempo dos dois lados com os dois olhos abertos. Estava nesse
exercício de pisca-pisca quando, de repente, ouvi gritos. Aos poucos fui
reconhecendo a voz da minha mãe – os gritos da minha mãe, na verdade – sempre
nervosa de manhã. Gritava o meu nome, batia nos meus braços e eu comecei a
sentir o cheiro da comida que ela devia estar fazendo. Então me dei conta de que
eu estava retomando os outros quatro sentidos. Ouvia, sentia os tapas dela nos
meus braços, sentia o cheiro inconfundível do tempero da minha mãe. Comecei a
rir, dava gargalhadas, e de repente vi aquela figura tão familiar na minha
frente, impaciente, repetindo a frase de sempre.
- Não vai acordar,
não? Tá quase na hora do almoço. Tá pensando que tá num hotel...