Os olhos
brilhavam como se fossem desenhos de mangá. Uma bolinha de luz nos dois olhos.
O sorriso era outra lembrança de um desenho. Dentes brancos e
perfeitos. Como se fossem uma só peça. Propaganda de creme dental. Estava
sorrindo naquela esquina quente e movimentada e nem viu o carro que,
desgovernado, subiu na calçada e atingiu várias pessoas como num jogo de
boliche. Carro pesado como bola de boliche. Ele era uma daquelas pessoas. Jazem
agora. Já eram pessoas. O carro todo arrebentado contra a parede da loja e as
ex-pessoas ali pelo chão.
Cena seguinte: o espanto nos rostos sobreviventes. E as mesmas
bolinhas de luz nos olhos dos rostos sobreviventes. Pensei que seria melhor se
todos saíssem dali porque poderia acontecer de novo. Já pensou de novo a mesma
tragédia levando dali um monte de alminhas felizes? Nem tão felizes agora, com
certeza, porque acabaram de presenciar aquilo tudo. Mas alminhas vivas ainda.
Mas foi só pensamento besta de quem acabara de presenciar uma tragédia.
Cena seguinte: as sirenes insuportáveis. As sirenes sempre sirenes
arrancando todos do torpor do susto do drama. E os paramédicos correndo como se
fosse possível salvar os que já perderam as alminhas.
Cena seguinte: a polícia chegando e indo atrás do causador da
tragédia. Mas os policiais não viram que do carro assassino também saiu uma
alminha esvoaçante e em pânico, já imaginando as provações pelas quais passaria.
Mais cena seguinte: as famílias. Ainda não chegaram, mas como vão
sofrer essas famílias. Será que vão querer um enterro coletivo? Será que
criarão amizade? Será que existem famílias daquelas ex-pessoas? Será que têm
crenças diferentes e vão ficar discutindo o motivo da tragédia? Foi Deus foi o
diabo? Será que vão perseguir a família do motorista assassino (ou suicida?).
Ah, famílias, famílias.
Cena seguinte: distraída com tantas ideias quase fui atropelada
enquanto atravessava a rua. Estava na faixa de pedestre, mas tive a sensação de
estar transparente porque os carros foram passando mesmo eu dando sinal com a
mão que estava atravessando. Aí veio aquele estalo na minha consciência: estou
morta que nem aquelas ex-pessoas na calçada que acabei de deixar. Apalpei meus
braços meu rosto pescoço tórax. Estava tudo ali, inteiro, sem sangue nem dores.
Mas lá no fundo, bem no fundo mesmo, não encontrei minha alminha. Fiquei
apavorada por não ter percebido que minha alminha já não era mais minha. Como é
que pode ela ter me deixado e eu não ter percebido nem pra dar um tchauzinho,
ou adeus porque a gente não se vê nunca mais. Oh minha alminha querida que
tantas vezes me ajudou e compartilhou meus momentos. Afinal, foram mais de 50
anos. Deveria ter me despedido. Procurei em volta. Olhei pro céu pra ver se
havia uma alminha subindo. Mas pensando bem nunca ninguém determinou que as
alminhas têm que ir pro céu. Elas podem ficar na terra mesmo. Andando a nossa
volta. Nossa não, em volta das
pessoas. Como eu sou uma ex-pessoa não terei mais alminhas andando em volta de
mim. Lembrei-me que, na verdade, as ex-pessoas se vão. Somem. Viram pó. Só precisam ficar
quietas por um tempo que vão se transformar inevitavelmente.
Última cena: Sentei no meio da rua, na faixa de pedestre. Deitei e rolei naquelas faixas brancas com os carros passando por cima de mim. Sempre tive vontade de saber como era a vida daquele ponto de vista. Eu lá, já sem vida, tendo sensações de prazer e espanto, ainda. Aí me dei conta que precisava ficar quieta pra virar pó. Parei de rolar de um lado para o outro. Só fiquei sentada. O semáforo ficou verde e vermelho inúmeras vezes. O dia virou noite. O trânsito diminuiu até virar um ou dois carros de cada vez. Cansei de ficar quieta e ainda nada aconteceu. De longe avistei outras daquelas ex-pessoas encostadas nas paredes perto do local do acidente. Foi tanto tédio que dormi. Ou será que virei pó?
Última cena: Sentei no meio da rua, na faixa de pedestre. Deitei e rolei naquelas faixas brancas com os carros passando por cima de mim. Sempre tive vontade de saber como era a vida daquele ponto de vista. Eu lá, já sem vida, tendo sensações de prazer e espanto, ainda. Aí me dei conta que precisava ficar quieta pra virar pó. Parei de rolar de um lado para o outro. Só fiquei sentada. O semáforo ficou verde e vermelho inúmeras vezes. O dia virou noite. O trânsito diminuiu até virar um ou dois carros de cada vez. Cansei de ficar quieta e ainda nada aconteceu. De longe avistei outras daquelas ex-pessoas encostadas nas paredes perto do local do acidente. Foi tanto tédio que dormi. Ou será que virei pó?
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