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30 março 2020

Tarde interminável

Foi inevitável lembrar deste poema e da situação em que me encontrava quando foi escrito. Hoje estou há 15 dias #emcasa, devido à pandemia provocada pelo coronavírus, que é novo mas que não deve ser o último com esse poder. Como já contou o personagem Mino, o menino do futuro, o ar fica cada vez mais tóxico no nosso planeta.

E agora?
Acabei de ler o segundo livro
e tenho que continuar neste enormespaço de friovento.
E agora?
Quando não se tem o que fazer,
o jeito é jogar o tempo fora,
pela janela. Janela?!?
Não é possível. Todas estão fechadas,
intransponíveis.
Olhar para a frente, para os lados.
Descobrir o sol numa nesga de persiana.
Viajar! Virar borboleta e passar pela fresta.
Empresta suas asas para mim?

Faltam ainda algumas longuíssimas horas.
O sol se põe
e não posso acompanhá-lo, deitando-se pelo horizonte.
Ecoam vozes estranhas.
Em minhas entranhas,
conservo ainda vontades, saudades e esperanças
de outras terras, outras idades.
Retorno adolescente ao banco da praça;
volto revolucionária ao dedo na estrada.
Espantada,
com fome e sono.

Viagens, viagens...
tantas fiz por estes mundos,
sem nunca ter saído da jaula, quebrado grades
(e descobrir que o guarda dorme e não me vê fugindo).
Viagens, viagens...
Vaguei mundos e estrelas na ponta do lápis.
Mais tarde,
só a máquina de escrever
conseguia acompanhar meus voos.
Em grande velocidade,
transformava todas as expectativas em saudade
de coisa já vivida.
Assim, fui realizando meus sonhos,
sem nunca precisar acordar.

Construí mundos e(m) fundos de quintais.
Cachorros latindo, roupa no varal, criança chorando e
longe o barulho do rio,
rodeado de palmeiras e eucaliptos.

Ah, água que tem força sobre mim!
Parada, me miro
(vira espelho)
c-o-n-t-e-m-p-l-a-ç-ã-o.
A ação do tempo.
Correndo, me persegue,
(vou atrás),
me envolve como lençol revolto
e me transporta.
Involuntária passagem.
No mar, subindo em ondas, marés, ventanias.
Batendo na rocha, no meu rosto.
Batendo naquela verdade escondida,
na porta fechada a todas as chaves.
Machucando,
ferindo.
“Água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura”.
De rocha à areia,
na mágica mutação da natureza.

Chego à praia,
(a mais uma viagem). A melhor.
Cheiro, quentura, gosto.
Tudo é sal,
sol,
maresia.
Tem ventania que não deixa nada parar.
Tem ventania com gosto de sal.
A onda sobe mais
uma vez,
outra e outras,
infinitamente.
Sem dono, sem patrão, sem domador.
Fera brava que engole até gente
e que não se deixa dominar.
A tarde cai rapidamente.
É hora de voltar para casa,
sem deixar de ver, antes, o pôr-do-sol.
Que lindo!
Como é grande sobre o mar.
(- Mamãe, quando o sol cair no mar ele esfria? O mar afoga ele?
- Não seja burra menina. Ele passa longe do mar.)

O ônibus parte assim,
com esta visão. Despedidas?
Só do caranguejinho que insistia em me acompanhar.
Daí para um outro lugar foi um pulo.
O ônibus tinha asas e foi atrás da gaivota.
Longe ela parou. Em
cima da montanha.
Era um ninho,
de onde saiu uma ninhada de gaivotinhas.
Agora não tinha lugar para tanta gente
e quem estava no ônibus
resolveu escalar a montanha, abaixo. Desescalar.
Na descida, é claro, grutas e cascatas.
Mistérios ancestrais
encravados nas paredes. As pedras rolam,
soterram formigas e pernilongos.
Dentro da gruta, uma saída
que vai dar de volta à realidade.
Pés no chão...
as estranhas vozes dão sono. Só eu escuto. Só.
Sentidos atentos
e vontade de realmente voar com(o) borboleta.
Ruídos todos voltam:
ônibus, gente, máquinas distantes.
Ainda não consigo identificar grande parte deles!! Que coisa!!
Estou com dor na mão e peso nos olhos.

(criada em 06-12-1983

06 maio 2017

Haicai

Vento outonal
o carro passa por cima
do chapéu de palha

06 novembro 2016

Um Quintana de sobremesa

Depois de mais de quatro horas dentro de um ônibus e de enfrentar três filas no aeroporto, finalmente me sento para ler "O melhor de Mário Quintana". Mais um "achado" na passagem pelo aeroporto de Porto Alegre. Descobri que há livros que só é possível achar por lá fisicamente.
O livro é um apanhado do melhor de Quintana na avaliação de três pessoas apaixonadas pelo poeta. O texto de Tabajaras Ruas que faz parte do livro é uma lição de história quintaneana. Se há alguém que ainda não conhece Mario Quintana deve ler esse texto e partir dele para descobrir o universo de Quintana.

Nem tão verde assim

Ela disse que era do "verde". O que seria o "verde"?, pensei então. Como não conhecia quase nada por lá imaginei um bairro, um rio ou um via pública. Senhora simpática em seus 73 anos, acompanhava o irmão 20 anos mais novo e doente terminal naquele hospital de caridade. Descreveu as condições do paciente e seguiu tratando-o com um carinho que chamava a atenção.
Veio do "verde", um lugar que soube depois ficar situado na área rural da cidade e abrigar muitos agricultores que plantam arroz. Um lugar agradável, fiquei pensando até ela começar a contar a respeito das sucessivas mortes por lá.
"Somos umas 10 viúvas", disse primeiro. "Mas também morrem mulheres, filhos e filhas nossos". Informou ainda que as frutas não são como antigamente, que as árvores perdem folhas e frutos antes da hora. "Acho que é a fumaça dos aviões que pulverizam a lavoura por lá", conclui sabiamente a respeito da praga jogada sobre o arroz.
Fiquei pensando quem seria o próximo a ser extinto em meio ao "verde". Ela mesma, que já toma 10 remédios por dia, ou o irmão que, apesar de deficiente, tinha saúde até ficar no estado em que se encontrava?
Mesmo interessada no início da conversa por conhecer o "verde" percebi que se tratava de mais um lugar mal explorado pela ação do homem, que fica à beira do rio que lhe dá nome e que já está tão poluído como um rio qualquer de qualquer centro urbano. De verde ficou só o nome.

04 novembro 2016

Camuflagem

Com suas roupas estampa-camuflagem
aquele monte de soldados parecia
uma floresta
árvores andantes como nos contos de Narnia
contra a luz das portas
e janelas
eram apenas seres em seus afazeres e
deveres

03 novembro 2016

Poema social

Levantei os olhos para aquele monte de cachorros que atravessavam a avenida
- grandes, fracos, famintos, olhos caídos espreitando
Quase não vi os carros que atravessavam o asfalto quente do meio da manhã
- o asfalto quente do meio da rua queimando os pés famintos dos cachorros
Uma matilha 
pensei assim que vi o monte de cachorros
Mas matilha imagino um grupo unido sem disputa
Eles estavam farejando a melhor caça com caras de não quererem dividir nada
Fiquei olhando por um tempo não medido
Os cachorros passaram 
sumiram
no fim da rua
Quando voltei a olhar para o lado real da avenida lá estavam outros
famintos seres com os mesmos olhares famintos e cansados também em grupo sem dividir nada além da fome e da tristeza
- um deles tinha um violão e uma canção
- outra, duas crianças sem esperança
Homens mulheres jovens e velhos
Olhei em volta procurando um canto pra pensar e escrever um poema de cunho social e me dei conta de como é utópica e inútil essa ideia

13 outubro 2016

Metamorfose

Um dia me descobri inquieta bem quieta desinquieta como dizia uma tia e esse dia não passava ou não passava a inquietude porque o dia já havia acabado há uma semana e então como Saramago comecei a escrever sem pontos aparentes sem parar sem parar até que a inquietude do dia passasse e o dia se fizesse longe esquecido e descartável e comecei a praticar concentração meditação tudo focado na inexistência dos pontos para esquecer da inquietação e esvaziava a mente a alma o coração e partia pra esvaziar a barriga pernas e braços e os abraços mas nada diminuía a tal inquietude de meu ser daqui a pouco pensava eu então vão passar meses e anos e eu aqui inquieta sem saber o por que e perdendo um tempo precioso pra viver de fato e nada mudava o quadro então vim pedir um remedinho doutor que me faça menos inquieta isso é ansiedade minha filha vamos resolver com dois ou três comprimidos diários puxa vida mais três doutor mas eu já tomo remédio pro coração pro colesterol pra outras coisas mais então vou prescrever só dois e não se fala mais nisso ah doutor obrigada sabe que eu adoro algumas palavras e essa prescrever é uma delas como são lindas as palavras isoladas e principalmente quando se juntam que nem traços de desenhos você vai riscando riscando e quando vê está ali um belo desenho que só você sabe o que significa mas que sensibiliza as pessoas porque o resultado da junção de um monte de traços riscos pontos gera um efeito sedutor e eu assim concentrada falando de junções de palavras e de traços e o doutor me interrompe tal qual um analista pra dizer que meu tempo havia acabado acabou não doutor meu tempo está apenas começando kkkkk

05 junho 2016

Viajando com Carpinejar

A forma do livro foi a primeira coisa que me chamou a atenção. A forma, depois a expressão e por fim o conteúdo.
E essa foi a primeira "viagem" proporcionada pelo livro "Amor à moda antiga". Os três atributos de uma obra de arte. Voltei 30 anos ao tempo em que pesquisava e escrevia em jornais sobre artes plásticas.
E Carpinejar abusou da sua opção de forma e de expressão. O livro é lindo e tem uma proposta criativa.
A segunda viagem, também ligada à atividade jornalística, se deu ao saber que o autor buscou em uma velha máquina de datilografia inspiração para sua mais recente obra. Que jornalista que atuou nos anos de 1980 que não se emociona diante de uma simples menção a uma Olivetti Lettera verdinha ?!?! E lá estava ele presenteado com uma Olivetti e com a feliz ideia de explorar o instrumento para expor suas emoções. Sim, a Olivetti não é uma ferramenta como se usa dizer em relação aos recursos do mundo digital. A Olivetti é um instrumento de trabalho.
Terceira viagem: me lembrei do espanto de minha filha mais nova, geração touch screen, diante de uma Olivetti - sem Del, sem ctrl-z, sem mudança de linha automática.
Viagem final: os versos de amor. Oh que lindo!

12 janeiro 2016

Brincadeiras

De madrugada, sem qualquer pessoa na rua, George foi até o viaduto que ficava perto de sua rua, spray na mão, tênis, moleton de capuz, uma escada caseira, e caprichou no desenho: um enorme coração vermelho que ficou pingando a tinta como se fossem gotas de sangue. Dentro do coração, com letras azuis, escreveu “Pollyanna, eu amo você! George”.
George é um menino tímido, olhar atento aos movimentos à sua volta, envergonhado diante de outras pessoas. É daqueles que ainda fica ruborizado em algumas situações. Bastante reservado, gosta de passear, mas também adora ficar em casa, no seu quarto, cuidando de suas bonecas. Coleciona algumas, de design diferenciado, importadas e nacionais. Ninguém sabe de seu hobby, que na verdade ele não considera hobby, pois desenvolveu todo um processo de relacionamento por causa das bonecas.
Primeiramente, teve que pesquisar onde comprar e, após começar as compras, passou a manter contato com outros colecionadores. Descobriu que havia um universo de collectors por todos os países. Descobriu-se em casa, conversando pela internet com gente que gostava do que ele gostava, com garotos e garotas que investiam algum dinheiro nas suas coleções e até com uns que, como ele, mantinham segredo a respeito das bonecas.
Nos últimos meses, investia metade seu salário de estagiário na compra de bonecas. Morava sozinho, o que facilitava a manutenção da sua coleção, que só aumentava de tamanho. Loiras, morenas, ruivas, cabelos cacheados, lisos, frisados; com roupas extravagantes ou clássicas; com fisionomias caracterizadas, ou semelhantes a uma menina de verdade. Criou blog, instagram, flickr, tudo para divulgar sua coleção. Passava horas com as bonecas, arrumando nos armários, fotografando, mudando de lugar, trocando as roupas. Para guardar tamanha coleção, comprou armários, mandou fazer, organizou prateleiras, até que sentiu o quarto-e-sala ficar cada vez mais reduzido. Tomou então uma decisão: iria encomendar aquela boneca dos seus sonhos, a mais cara de todas as que já tinha; fabricada na Tailândia, linda, linda, pensava. Depois dela, iria parar de comprar, porque considerava que sua coleção estava completa.
Encomendou a boneca, uma LatiDoll. Iria se chamar Pollyanna, assim mesmo, com várias letras repetidas. Todas as suas bonecas tinham nome e a sua preferida teria esse nome. Pollyanna chegou em um sábado ensolarado. A boca e o nariz miúdos contrastavam com os olhos grandes que brilhavam assim que saiu da caixa. George chorou ao abraçar sua boneca, de uns 15 cm de altura, roupinhas floridas, cabelo loiro, amarrado em duas marias-chiquinhas. Fotografou e postou várias imagens; teve dezenas de likes; falou para os amigos colecionadores de sua nova e última aquisição; recebeu inúmeros elogios.
O primeiro dia com Pollyanna passou muito rápido, na avaliação de George. Anoiteceu e ele ainda nem havia lanchado. Olhou em volta e encontrou um lugar para a boneca passar a noite, sentada à frente de outras em uma prateleira à altura dos olhos de George. Fez tudo que tinha que fazer em casa e, de madrugada, desceu para registrar no viaduto sua felicidade com a nova companheira.

30 novembro 2015

Ex-pessoa sem alminha!

Os olhos brilhavam como se fossem desenhos de mangá. Uma bolinha de luz nos dois olhos.
O sorriso era outra lembrança de um desenho. Dentes brancos e perfeitos. Como se fossem uma só peça. Propaganda de creme dental. Estava sorrindo naquela esquina quente e movimentada e nem viu o carro que, desgovernado, subiu na calçada e atingiu várias pessoas como num jogo de boliche. Carro pesado como bola de boliche. Ele era uma daquelas pessoas. Jazem agora. Já eram pessoas. O carro todo arrebentado contra a parede da loja e as ex-pessoas ali pelo chão.
Cena seguinte: o espanto nos rostos sobreviventes. E as mesmas bolinhas de luz nos olhos dos rostos sobreviventes. Pensei que seria melhor se todos saíssem dali porque poderia acontecer de novo. Já pensou de novo a mesma tragédia levando dali um monte de alminhas felizes? Nem tão felizes agora, com certeza, porque acabaram de presenciar aquilo tudo. Mas alminhas vivas ainda. Mas foi só pensamento besta de quem acabara de presenciar uma tragédia.
Cena seguinte: as sirenes insuportáveis. As sirenes sempre sirenes arrancando todos do torpor do susto do drama. E os paramédicos correndo como se fosse possível salvar os que já perderam as alminhas.
Cena seguinte: a polícia chegando e indo atrás do causador da tragédia. Mas os policiais não viram que do carro assassino também saiu uma alminha esvoaçante e em pânico, já imaginando as provações pelas quais passaria.
Mais cena seguinte: as famílias. Ainda não chegaram, mas como vão sofrer essas famílias. Será que vão querer um enterro coletivo? Será que criarão amizade? Será que existem famílias daquelas ex-pessoas? Será que têm crenças diferentes e vão ficar discutindo o motivo da tragédia? Foi Deus foi o diabo? Será que vão perseguir a família do motorista assassino (ou suicida?). Ah, famílias, famílias.
Cena seguinte: distraída com tantas ideias quase fui atropelada enquanto atravessava a rua. Estava na faixa de pedestre, mas tive a sensação de estar transparente porque os carros foram passando mesmo eu dando sinal com a mão que estava atravessando. Aí veio aquele estalo na minha consciência: estou morta que nem aquelas ex-pessoas na calçada que acabei de deixar. Apalpei meus braços meu rosto pescoço tórax. Estava tudo ali, inteiro, sem sangue nem dores. Mas lá no fundo, bem no fundo mesmo, não encontrei minha alminha. Fiquei apavorada por não ter percebido que minha alminha já não era mais minha. Como é que pode ela ter me deixado e eu não ter percebido nem pra dar um tchauzinho, ou adeus porque a gente não se vê nunca mais. Oh minha alminha querida que tantas vezes me ajudou e compartilhou meus momentos. Afinal, foram mais de 50 anos. Deveria ter me despedido. Procurei em volta. Olhei pro céu pra ver se havia uma alminha subindo. Mas pensando bem nunca ninguém determinou que as alminhas têm que ir pro céu. Elas podem ficar na terra mesmo. Andando a nossa volta. Nossa não,  em volta das pessoas. Como eu sou uma ex-pessoa não terei mais alminhas andando em volta de mim. Lembrei-me que, na verdade, as ex-pessoas se vão. Somem. Viram pó. Só precisam ficar quietas por um tempo que vão se transformar inevitavelmente.
Última cena: Sentei no meio da rua, na faixa de pedestre. Deitei e rolei naquelas faixas brancas com os carros passando por cima de mim. Sempre tive vontade de saber como era a vida daquele ponto de vista. Eu lá, já sem vida, tendo sensações de prazer e espanto, ainda. Aí me dei conta que precisava ficar quieta pra virar pó. Parei de rolar de um lado para o outro. Só fiquei sentada. O semáforo ficou verde e vermelho inúmeras vezes. O dia virou noite. O trânsito diminuiu até virar um ou dois carros de cada vez. Cansei de ficar quieta e ainda nada aconteceu. De longe avistei outras daquelas ex-pessoas encostadas nas paredes perto do local do acidente. Foi tanto tédio que dormi. Ou será que virei pó?