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14 novembro 2007

Minha mãe é uma criança

Integra Coletânea do Prêmio Sesc de Contos Infantis/2007

E
u acho que minha mãe está meio maluquinha. Anda com umas idéias que nem eu, que sou criança ainda, penso assim. Sabe o que ela me disse um dia desses, na hora do almoço, quando meu pai pediu o paliteiro e não havia palito dentro? Ela levantou e disse: “Vou lá na horta pegar uns palitos, porque eles já devem estar maduros hoje”. Como é que pode, achar que palito de dente é plantado em horta? Eu fui lá e olhei por todo lado e não vi nada parecido com palito. Pra falar a verdade, tem uma árvore com uns palitinhos nos galhos, mas eles machucam. Eu até achei que minha mãe tinha razão quando vi esses palitinhos, mas depois, vendo bem de perto, vi que não eram a mesma coisa que os palitos do paliteiro. Arranquei um da árvore e machuquei meu dedo. Foi aí que eu vi que não era igual e pensei, se machuca o dedo, que dirá uma gengiva?

O mais estranho é que minha mãe foi lá na horta e voltou com o paliteiro cheio, e não eram aqueles palitinhos da árvore que eu vi. Eram palitos de verdade. Eu não sei de onde ela tirou, mas ela disse que foi da horta sim e que o pé de palito está lá para qualquer um ver. Mas ela é cabeça dura e não quer ir lá comigo para me mostrar qual é o pé de palito. “Só quando o paliteiro se esvaziar de novo”, ela disse. Mas eu acho que ela vai dar um jeitinho dele nunca mais ficar vazio só para eu não conhecer o pé de palitos.

Mas essa história de pé de palito não foi nada. Pior foi o que ela disse hoje, quando resolveu varrer a varanda lá fora. Foi juntando o lixinho, com um monte de pêlo do nosso cachorro labrador, e disse que vai começar a guardar os pêlos porque com eles vai fazer um novo cachorro, igualzinho ao nosso. Ah, isso não! Ela começou a guardar os pêlos dentro de uma caixa de sapatos. Ela garante que, quando encher a caixa, faz um montinho, vai arrumando daqui, arrumando dali e faz um cachorro. Minha mãe disse que ele vai ser pequeno, porque ainda vai ser filhote, mas ela garantiu que ele vai crescer que nem o outro e vai ficar grandão, adulto, bonitão. Eu disse que não acreditava nisso e ela me lembrou da história do elefante do Carlos Drummond de Andrade, um poeta que também tinha umas idéias assim assim. Ela leu esse livrinho para mim e lá tem mesmo um elefante criado com restos de pano, costurados, tudo remendado. Ah, esse pobre cachorro vai ser um monstrinho. Vou esperar chegar esse dia. A caixa vai encher rapidinho, porque ele solta muito pêlo e todo dia minha mãe varre lá fora. Às vezes varre mais de uma vez (ela deve estar com pressa de fazer o cachorrinho).

Minha mãe tem cada idéia deste tipo que eu fico imaginando se ela pensa que eu sou bobinha e que eu acredito em tudo que ela diz. Ela até fala com biscoitos. Pode ser biscoito doce ou salgado. Ela olha para ele, bem séria, e pede desculpas. Aí ela come o biscoito. Minha mãe gosta de uma mistura nojenta, de biscoito doce com leite. Ela coloca tudo num copo e faz uma papinha, que ela come com uma colher. Mas antes dela comer, antes mesmo dos biscoitos ficarem molinhos no leite, ela bate aquele papo com os biscoitos. Fica dizendo que não queria afogá-los, que eles têm que desculpar sua fome, que o leite é bom também para eles. Um dia ela começou a chorar na frente do copo e eu fui fazer um carinho nela. Ela me olhou e disse: “Coitados dos biscoitos, filha, eles estão se afogando”, e continuou chorando. Depois comeu tudo, que nem criança.

Por falar nisto, ela gosta de usar uma colherinha pequena, do tamanho da colherinha que eu uso para comer. Ela disse que é bom comer doces e os biscoitos no leite com colher pequena porque assim demora mais para acabar e ela pode aproveitar mais tempo o que está comendo. Ah, mamãe! Como você é boba, já disse algumas vezes para ela. Ela riu para mim e me deu uns beijos.

Ela pensa até que boneca fala e chora e que entende a gente. Sempre que eu estou brincando ela vem e pega minha boneca e fica falando com ela, imitando voz de bebezinho, e insiste que ela fale comigo e eu com ela. Eu já expliquei para ela que boneca não fala. Que boneca é só boneca e a gente brinca com ela. Pra isso é que servem as bonecas. A gente é que fala e chora e entende as coisas. Não as bonecas. Mas minha mãe fica com aquela vozinha falsa de bebê, e me olha querendo que eu também fale daquele jeito. Às vezes eu penso que minha mãe voltou a ser criança ou então que ela não teve tempo de brincar quando era pequena e agora resolveu brincar. Tadinha dela.

Outra coisa. Ela fala com as plantas e coloca música para as plantas ouvirem. E ela está certa que elas gostam, que até se balançam com a música. Ela também é apaixonada pela lua e diz, toda feliz, que não é todo mundo que tem uma palmeira imperial com uma lua atrás, que nem a gente tem na frente da nossa casa. Como se a lua viesse grudada na palmeira. É ela que se coloca na frente da palmeira só para ver a lua lá atrás, no meio daquelas folhas enormes.

Bem, minha mãe é assim mesmo. Cheia de gracinhas e mentirinhas. Ela acha que eu acredito e eu finjo que acredito só porque assim eu acho que ela fica feliz. Eu acho que ela sabe que eu estou fingindo, afinal, mãe sabe sempre tudo e não é possível que não saiba que eu sei que ela está inventando um montão de histórias só para me distrair. Claro que às vezes eu fico assim, meio preocupada, porque ela pode estar ficando maluquinha de verdade. Mas estar maluquinha não deve ser tão ruim, pois já li um livro daquele outro maluquinho, o menino criado pelo Ziraldo, que eu gosto muito. E eu me lembro que no final, depois que o Menino Maluquinho cresceu, chegaram à conclusão que ele não era um menino maluquinho, mas era apenas um menino feliz. Acho que a minha mãe é assim. É feliz. É uma menina feliz. E aí eu fico feliz também.

10 novembro 2007

Fantasias

Minha filha de 12 anos foi convidada para uma festa à fantasia. Achei estranho haver uma festa desse tipo em pleno mês de novembro. “Não é festa de Halloween?”, perguntei, e ela disse que não, que seria mesmo uma “festa festa” e que todos teriam que ir vestidos com uma fantasia.
Então procuramos uma loja que vendesse a roupa. Para minha surpresa, havia várias lojas especializadas em fantasias, cada uma com dezenas de fantasias, de todos os tipos e tamanhos, e que não só vendiam, mas principalmente alugavam as tais fantasias. Para minha surpresa ainda maior, a loja que escolhemos, por ser mais próxima de nossa casa, estava lotada de adultos e adolescentes comprando fantasias o que significava – e eu mais surpresa ainda! – que haveria outras festas à fantasia naquele final de semana. “Alugar sai mais em conta, porque o preço para comprar é três vezes maior que o preço do aluguel”, explicou uma vendedora.


Era um sábado e a loja fechava às 14h. É claro que já estava chegando o meio-dia e a loja foi ficando cada vez mais lotada de clientes de última hora. Uma família inteira tentou se encaixar em um conjunto de fantasias que não consegui identificar o que significavam: pareciam plantas, gnomos, troncos de árvores. Tinham afinidade, porém. Outra freguesa quis uma coroa de princesa e saiu com a que achou mais linda e de aluguel mais barato. E a "Mulher-Gato" veio cobrar as orelhinhas que estavam faltando na fantasia que alugara.
Não há mais fantasia de grego”, disse a vendedora para um rapaz que entrou na loja com a namorada, a amiga da namorada e mais uma criança. “Como não há mais?”, disse o freguês surpreso. “É que está havendo uma festa de gregos e troianos e tudo já foi alugado”, respondeu.
Festa de gregos e troianos, que coisa incrível. Daqui a pouco chegou outro grupo procurando fantasias para uma festa de McDonalds. Fiquei esperando uma resposta negativa da vendedora, mas muitas surpresas ainda me aguardavam. Lá estavam as fantasias de “big mac”, “batata frita”, “copo de refrigerante”, “sorvete”, “canudo”, “torta de banana” e até o novíssimo sanduíche com molho de mel e mostarda. Atordoada, cheguei a ficar aliviada por saber que minha filha desejava uma simples fantasia de “mamãe Noel”.
Mamãe Noel de vestido ou de saia?”, perguntou a vendedora. Trouxe as opções que encontrou. Peças enormes, que engoliram minha filha. “É só escolher que a costureira faz os ajustes”, explicava a vendedora que conseguia a proeza de se multiplicar dentre as dezenas de peças penduradas em inúmeros cabides dentro da loja e desse meio surgia a todo o momento.
Confesso que aquela montoeira de roupa e gente e conversa causou-me um desconforto ampliado pela falta de ventilação do lugar. Continuava esperando que a “Mamãe Noel” resolvesse o que vestir naquela noite, até que ela preferiu o vestido, que vinha acompanhado de luvas, saco de presentes (sem presentes, claro), cinto preto, gorro. “Vai querer meia arrastão vermelha ou meia-calça branca?”, ofereceu ainda a vendedora, como complementação ao pacote. “Não quero meia”, disse minha filha, manifestando o que lhe restava de bom-senso naquele ambiente.
Finalmente com o pacote de “Mamãe Noel” pronto, fui pagar o aluguel. A vendedora foi interrompida por um senhor que, acompanhado da filha, procurava “uma máscara para a festa da Rute”. A vendedora trouxe uma máscara no melhor estilo carnaval veneziano, branca, rendada, pela metade, o que significava que a metade do rosto ficaria à mostra. “É isso?”, disse o homem com ar de decepção. “É para o senhor?”, perguntou a vendedora sem responder. “Dizem que é”, respondeu o desencantado, certamente imaginando o quanto ficaria exposto na brincadeira do faz-de-conta.
Saímos da loja, eu e minha adolescente “Mamãe Noel”. Lá fora, sem fantasia, uma menina pedia esmola, sentada junto à vitrine da loja, de costas para um super-homem e uma odalisca.

21 setembro 2007

Poesia na roda do Sarau da Primavera

Está quase na metade a meta a que se propuseram o poeta Menezes y Moraes e o Coletivo de Poetas no Sarau da Primavera especial: a maratona 100 Horas de Poesia na Roda. Tudo começou na noite de quarta-feira (19) e a festa está prevista para se encerrar na virada de domingo pra segunda-feira. Lançamentos, leituras, minipalestras de diversos autores, homenagens a autores mortos e vivos, mostra de cinema, exposição de artes plásticas, oficinas e feira mix. A entrada é franca no Clube da Imprensa de Brasília, à beira do Lago Paranoá. O Sarau também homenageia os 45 anos do Clube da Imprensa e os 17 anos do Coletivo de Poetas. De acordo com os organizadores, as 100 Horas de Poesia na Roda poderão ser o sarau de maior duração do mundo. Para isto, a coordenação está em contato com a administração do Guinness Book que deverá constatar o recorde mundial da roda de poesia.

21 julho 2007

Gota

O mundo é miúdo,
é gota de orvalho sobre o capim;

É apenas um verso, esse universo,
do imenso poema do sem-fim;

Pedaços entrelaçados
soltando haicais por todos os lados

07 junho 2007

Sem limites

Não quero ter limites na palavra,
por isso lavro as entrelinhas
- sulcos necessários para acomodar minhas idéias -
por isso levo pá e mais sementes
e tenho a certeza que de algum lugar um fruto sairá.

Tudo o que eu quero é continuar dizendo eu quero,
não mais queria ou gostaria,
verbos frouxos no querer.
Tudo o que eu quero é possuir um mundo em minhas mãos,
ter opções de escolha e rejeição,
ter o que ver, cheirar, tocar
em cores, formas e expressões
ilimitadas

31 maio 2007



A lua chegou.
Vou tomar banho de prata
na minha janela
Visite minha página de Haicais: http://haicaibalao.blogspot.com


Em Brasília, 19h!
(em horário de verão, claro)

24 maio 2007


"Era tão reto quanto uma flecha que o vento desvia!"

* Colaboração do músico Assis Medeiros*

21 maio 2007

FRACTALIDADES

Projeto que reúne 20 poemas sob o signo do fractal - "estrutura geométrica complexa cujas propriedades, em geral, repetem-se em qualquer escala", do ponto de vista matemático - Fractalidades é uma proposta inspirada na ideia do poeta e músico Assis Medeiros, lançada quando tentávamos, juntamente com Luciana Pereira e André Rêgo, encontrar um ponto em comum entre nossos trabalhos. Nosso projeto ainda está em fase de análise, mas o fractal não para de se movimentar. Confira alguns poemas de Fractalidades.

11 maio 2007

A luz



O cupim lutava há vários minutos para sair da poça d’água; rodopiava, batia as asas molhadas, conseguia escapar, mas voltava para o mesmo lugar. Imaginava que aquela era a passagem para alcançar a luz que seu DNA mandava perseguir. Mal sabia o inseto que estava sobre um traiçoeiro reflexo e que a verdadeira luz estava do lado oposto ao líquido que lhe serviria de cova.

07 maio 2007

Pó & Cia.

.................
.................
.................
enterrados no asfalto
seus saltos altos falsos tentáculos
ostentam a miséria da imaginação.

Cabisbaixa,
- rosário de contas arrebentado -,
busca pelo chão as incontáveis punições e
expia a culpa de não sustentar
a obrigação.

E agora que tudo se foi?
O que se foi?
E depois que tudo se foi?
O que foi?
Bem,
continuamos prosando eternamente
mesmo sem o nexo que facilita a vida
até sem a reta previsão e
inclusive sem o cheiro do café na hora certa.
Sempre quis tentar o impossível só
para torná-lo possível.
Agora eu posso!
Podemos todos e tudo
e sem primaveras, sem cravos, sem janelas, serenatas, neblinas na madrugada.

29 abril 2007

Boquiaberta

Aquela mulher tinha um rosto escorrido como se fosse uma daquelas máscaras de látex, vendidas na época de Carnaval ou para o Halloween. E a voz acompanhava as ondulações decrescentes do seu rosto. Saía quase inaudível pela boca, esgueirando-se pelos cantos, por trás dos dentes, envolvendo a língua e escorrendo-se pelos lábios.

- Já chegou o livro que eu encomendei?

- Q-u-e l-i-v-r-o? – perguntou com olhos e boca quase encostando no tampo da mesa.

Entreguei um papel com todos os dados do livro e percebi que o movimento do braço e da mão que estendeu para pegar o papel tinha a mesma conformação do rosto. Esguio o braço, fina a mão, brancos e lentos em câmera lenta pegaram o papel e iniciaram o caminho de volta até perto do rosto.

- A-h, s-i-m, c-h-e-g-o-u, v-o-u p-e-g-a-r!

Posicionou a palma da mão direita sobre a mesa, tomou impulso e levantou-se da cadeira. Era alta, fina e esguia como mão e braço; escorrida como o rosto. E andava como uma sereia andaria em terra firme, forçando um pé após o outro com dificuldade, tentando mostrar uma naturalidade que não existia. Não parecia estar à vontade naquele ambiente, nem naquele corpo, mas esforçava-se para mostrar competência.

O livro estava em uma estante no fundo da livraria, atrás de outras repletas de livros usados e novos amontoados sem ordem nas prateleiras. Por cima dessas estantes avistei o improvável movimento da vendedora que pegava o livro encomendado na prateleira mais alta. Esticou-se além do que permitia sua condição de humana. Mistura de sereia e boneca de látex, parecia personagem de desenho animado esticando um braço a fim de salvar um cidadão em perigo, ou pegar uma bala recém-atirada, ou pegar um livro fora do alcance do resto da humanidade.

- A-q-u-i e-s-t-á, p-o-d-e p-a-g-a-r n-o c-a-i-x-a. O-b-r-i-g-a-d-a e d-e-s-c-u-l-p-a p-e-l-a d-e-m-o-r-a, disse, soletrando as palavras.

Boquiaberto com aquela situação, senti meu queixo caído quase tanto quanto o dela. Paguei e saí dali segurando o livro debaixo do braço, com uma estranha sensação de que havia um par de olhos me acompanhando, virando a esquina atrás de mim.

14 abril 2007


FRACTALIDADE
Somos todos da mesma receita
repetida,
revestidos de cores e formas variadas

Somos todos do mesmo forno
universal,
assados de tempo e espaço diferentes

Somos todos da mesma célula
insétil,
dotados de vontade e sorte individuais


Somos todos da mesma história
milenar,
recheados de idas e vindas tão atuais

Somos todos do imenso fractal
ininterrupto,
compostos de lados e dados desiguais.



MEU MUNDO
Meu mundo é um amontoado de pesares,
olhares furtivos,
esquivos encontros

Meu mundo é um amarradinho,
temperinho variado,
mercado de variedades

Meu mundo não é tão vasto,
casto ou com rimas,
lágrimas sem solução

Meu mundo, ah, mundo!
de fundo ou de frente
igualmente me serve

É mundo, é chão,
não é qualquer precipício,
é indício da minha criação!



LIBERDADE
Se tivesse asas
passaria meus dias nos ares
acariciando minha pele
com a sedosa e macia
ação do vento;
com o calor do sol
e a suavidade das nuvens

Se tivesse asas,
como Ícaro,
eu arriscaria ver-te do alto
Ensaiaria altos e baixos
pingue-pongue
entre o sol e o brilho da paisagem

Se tivesse asas
não passaria meus dias
desviando de abismos e
obstáculos
entre pernas e cascalhos

Meu limite seria o infinito
brilho da paisagem
Entre céu e mar
Entre sol e eu
em mergulhos infindáveis
de emoção


PASSADO
Havia mares
lugares sombrios
altares sem reis

Havia pouco
naquele louco mundo
solto na imaginação

Havia esperança
de criança nascida
na dança da vida

E pedras e flores
e dores e luas
e suores na escuridão.


APOSTA
Às vezes voo
  Às vezes nada
Quantas vezes repouso
na mansidão do planalto

Às vezes rua,
  outras vezes mata
Descoberta da chave
da liberdade

Muitas vezes vertigem
das vezes tentadas
em voo de liberdade


Outras vezes perigo
nas vezes de travessia
nos caminhos de volta.


OUTONAL
Os outonos são sempre assim:
cinzentos
instáveis
sonolentos.
Têm aquele jeito de aconchego,
a expectativa de dias mais frios e sombrios,
mas a esperança
de que novas primaveras cheguem
antecedendo o sol de verão.

Mas os outonos são todos iguais:
se enfeitam com folhas secas
- camufladas paisagens
de cores virtuais em dias cinzas –
deixando expostos galhos
- estruturas sobreviventes
de muitas estações.

Os outonos são inevitáveis,
passagem obrigatória.
Parte sossegada de uma longa viagem!


ENTRESSAFRA
Há muito tempo não faço poesia como se faz um filho,
com tesão, criatividade e iluminação.
Há tempos não descubro a rima certa para a emoção!
Fico aí a desfiar um dicionário,
expondo conceitos,
dizendo esconder cartas do baralho,
apenas desenhando e colorindo versos
como se arco-íris fossem
a se enterrar em dourados potes.


Há muito tempo eu não faço poesia à luz do dia
conjugando o verbo criar.
Há tempos não me entrego à brincadeira de inovar!
Fico por aí fazendo cálculos
para não ultrapassar a métrica liberdade da expressão;
buscando escolas,
apenas encaixando rimas nos versos,
como se estrelas fossem
obrigadas a atravessar a madrugada sem pretensão.

Há muito tempo eu não descubro a poesia na janela
camuflada atrás de uma nuvem.

Há tempos não vislumbro a mágica ilusão!
Fico então a versejar um aguaceiro,
afogando mágoas,
confessando haver sempre um novo dia,
apenas enganando a fome de viver,
como se vaga fosse sobre o mar
a enterrar na areia garrafas vazias.


BRASIL
Musa cantada,
encantada entre montanha e mar.
Quanta mata,
morte,
sertão e sonho
se encontram em suas entranhas.
Quanto assalto,
quanta manha,
tamanha fome
em terra tão farta

Os homens não souberam cultivar as sementes
Somente tirara sua seiva
abriram veias
deixando sangrar todo seu ouro
mar afora.
Os homens (seus homens)
vasculharam seus tesouros
Possessos, possuidores,
se fizeram donos,
senhores de seu corpo,
e abandonaram os restos
para quem realmente ama sua riqueza.

Musa passiva,
decisiva entre descobertas e perdas.
Quanta gente,
graça,
interior e beira-mar
passeiam por suas areias.
Quantos botos,
quantas sereias,
tamanha crença
em terra desenganada

Os homens não souberam rezar as encomendas
com medo, acenderam velas,
abriram belas
seitas em seu coração
terra adentro.
Os homens (seus homens)
penetraram suas vontades
Dominadores, defensores,
se fizeram pais-de-santo,
senhores de seu espírito
e abandonaram um corpo inerte
para quem precisa colher o pão.



PROCURA

Eu queria saber
quem é que escreve
este poema;
quem é que guia minha
alma;
quem é que acerta
a rima
o ritmo
o compasso;
quem é que acerta
e me aperta o passo.


Eu queria saber
quem me escreve
no mundo;
quem me inscreveu
para pensar e
tentar
buscar eternamente a felicidade
e a liberdade

Cadê o autor deste
tema?
Gostaria de ver
o anjo que guarda este poema
que guia minha mão,
- anjo de alma, de pena -
a alma da minha mão,
a pena na mão;
que escolhe a rima
que recolhe as paixões
que esparrama os versos por este chão.


MOTIVOS
Só quero saber se existe
Motivo
Só quero saber se
Motivo
Só quero saber
Motivo
Só quero
Motivo

Motivo
Motivo
Motivo...

- Quando acabar a razão
cadê o coração?
- Sem motivo,
com razão.



CONTEMPLAÇÃO
Quando te olho
vejo sair de ti tantas histórias!
Tantos sonhos naufragados
aparecem em tuas retinas;
tantos fantasmas,
amargurados medos
ainda perdidos,
entreolhando como olhos entre dedos.

Mas, quando te contemplo
- te olho com outros olhos -
muda-se a página da história.

Vão-se os fantasmas
esgueirando-se
à luz da descoberta;
fogem os medos,
quando os dedos,
a percorrer teus traços,
descobrem mil outras histórias
naufragadas na rotina.


SER UNIVERSAL
Fractais,
preciosos cristais,
pedaços de universo dentro de minhas células,
fraturas de um único corpo
- sempre o mesmo - molde de todas as partes.
Fractalidade,
qualidade de ser universal,
densidade do efêmero estar
quando a passagem garante o retorno ao ponto de partida
no exercício do infinito jogo do existir.
Ser, estar, não ser, ficar para partir,
praticar a eterna impermanência,
fractalizar a existência!


GOTA
O mundo é miúdo,
é gota de orvalho sobre o capim;

É apenas um verso, esse universo,
do imenso poema do sem-fim;

Pedaços entrelaçados
soltando haicais por todos os lados


QUEM SOMOS
Afinal,
quem sou?
quem somos?
Nós de novo, neste imenso sertão,
apertados
indesatáveis
em reiterados lamentos de solidão

Somos
porque já fomos
início e meio

Somos
porque ainda não findamos

Somos porque,
eternos,
continuamos guardando o universo em cada farelo
infinitamente dividido e multiplicado

Somos,
afinal,
quem um dia criou a magia
e jamais teve vontade
de voltar atrás!


QUÂNTICA SAUDADE
Que saudade é esta que eu sinto de lugar nenhum,
de qualquer um,
de um ou outro amor que nunca existirá?
Que quântica dimensão é esta
que me enleva e me submete,
que me tira o chão e me promete o universo que cabe na minha mão?

Oh, quanta dúvida de um conhecimento nato
que me pertence desde que o mundo é mundo;
desde que o átomo transgrediu a receita acadêmica
e se dividiu
e se reproduziu
e me produziu à imagem e semelhança de sua menor partícula.

Oh, tentação de também transgredir as fórmulas
e estourar a boca do balão;
jogar no espaço infinitos pedaços em manifestação big bangniana
e refazer meu universo
nem que seja só para confirmar que tudo será
sempre
milimetricamente igual à totalidade do cosmo.


MAIS DE MIL E UM DIAS
É assim, passando o tempo, folha por folha,
que vou vendo caírem minhas tardes,
que vou olhando passar o rio
por janelas que sempre estarão abertas para um poente certo.

É assim, desfolhando as horas,
e desfiando a linha do horizonte,
que resolvo desafiar o jogo
e remontar o quebra-cabeça ininterruptamente!

Como uma Sherazade repetitiva na história
quero enganar o algoz
desacelerar os ponteiros
e arrancar as asas do cavalo para deixar o carro menos veloz
na travessia
e multiplicar dias e dias e dias
rumo às noites
inevitáveis.


CÓDIGO GENÉTICO
O dia está cinza
e as formigas prosseguem em suas rotas,
porque são formigas
O dia pode estar ensolarado, chuvoso, cinza ou azulado
e as formigas vão estar sempre formigas.
Eu, que não sou formiga,
fico triste com um dia cinza,
me alegro com o sol
e me derreto toda quando está chovendo.
Enquanto isso, as formigas seguem seus caminhos infinitamente.


LANÇAMENTOS
Lanço no ar uma ideia engarrafada,
visível, mas
intangível possibilidade

Lanço no mar uma pedra desaforada,
emotiva, porém
altiva eletricidade

Fico aguardando o retorno:
garrafada na cabeça ou
a descarga elétrica,
efeitos de lançamentos improcedentes.


PELA TANGENTE
Enquanto o pássaro escapava do meu campo de visão,
virando à esquerda do vértice do meu horizonte
eu observava, extasiada, o pôr-do-sol pousando,
lentamente, aos meus pés.

Enquanto o sol tangenciava o planeta
driblando o vértice do planalto
eu aguardava a lua chegar cheia de medos
cochichando segredos em meus cabelos

Era sempre assim desde sempre, desde sempre. Agora
que o mundo já se acha maduro
eu esperava que alguma coisa nova acontecesse
mas não se pode mudar a rotina dos astros.


PROCESSO
Armado em blocos, 
teu nome agora é objeto, 
um processo poético. 
A rima está no equilíbrio da própria forma 
geométrica, 
uma sete mostrando o universo. 
Como você: 
olhando estrelas 
sem tirar os pés do chão!

10 janeiro 2007

SENTIR - VERBO INTRANSIGENTE


De repente um grito! O meu grito se identificando com outros gritos de um momento histórico retratado pelo pintor norueguês Edvard Münch.
De repente, a perda, a tristeza, o choro, o corpo e a alma; um mundo fragmentado tentando se recompor. Depois o renascer, a retomada do ciclo da vida, o encontro do equilíbrio, a beleza e a felicidade, tudo à espera de um anoitecer bem iluminado.

Esta obra é pura emoção! Uma demonstração de que tenho sentimentos em excesso e não tenho escrúpulos de expô-los. É a minha conjugação do verbo sentir de maneira intransigente, sem ter que me desculpar por isso, sem ceder à razão.


Amar - verbo intransigente nasceu sob o impacto de um dos mais fortes sentimentos impostos ao ser humano, a dor da perda. Cresceu amparado na esperança e na alegria da retomada e da confirmação da vida. Agora, e desde que passei a entender e aceitar que a impermanência é uma constante no ciclo da vida, ele apresenta-se como um baú de emoções, um lugar de aconchego, de solidariedade, de encontro.

Neste catálogo de sentimentos que surgiram a partir da observação de pinturas reconhecidas em todo o mundo está um pouco de dores e paixões, cores e alegrias do dia-a-dia, está a expressão de emoções particularizadas, colhidas no cotidiano. Na forma, Amar - verbo intransigente é um conjunto de 13 poemas que marcam o encontro da poesia escrita com a poesia pintada; em seu conteúdo, é uma licença poética e pictórica que me permiti no momento em que esse era meu único meio para interpretar e traduzir o ciclo da vida. O resultado dessa experiência está em Meu Grito, Ausência, Meu Desaguar, Fragmentos, Meus Nascentes, O Círculo, Tao, Criança, Eternidade, Sonho, Desejo, Doce Vida e Noturno.

Noturno

Minha noite está chegando
explodindo luzes na negritude do universo,
se destacando cintilante
nos contornos da paisagem,
e se sobrepondo aos dias
em luminosa luminescência.
Minha noite é luz,
vaga-lume aceso na imensidão,
um eterno farol de neón
que irá garantir tranqüilidade
até o fim da viagem.

Criado em 24-09-2005 sobre Noite estrelada, de Vincent Van Gogh, para Sentir - Verbo Intransigente

Doce vida



Só descobri a felicidade quando olhei na fechadura de meus olhos
e vislumbrei o universo efervescente,
brilhante em seu eterno breu e tão instável em sua eternidade
Ali é o lugar onde eu sou feliz;
ali está a placidez e a velocidade atômica.
É ali, imagem que vasculho diante deste espelho,
que descubro que
a vida é tão boa que

até sem fazer nada
nos esparramamos no viver!
Olho nos meus olhos e me vejo,
- e te vejo, vida –
no pequeno diâmetro da íris luminosa
refletindo todas as cores, o ritmo, as dores, as paixões

do meu viver.
É por isto que o ócio de uma tarde de sol

faz pulsar mais forte o coração!

Criado em 02-10-2005 sobre Onde eu estaria feliz, de Emiliano Di Cavalcanti, para Sentir - Verbo Intransigente

Sonho



Não há sonho que não me mostre meus anseios mais disformes
aqueles tortos desejos que à luz da realidade
batem asa e vão-se embora.

Nesta viagem, encontro sempre num canto da memória
uma lagarta perdida, muito feia, muito triste,
achando que não tem chance na vida.

De repente, cria cores, estremece, surpreende os próprios sonhos
e se despede da amorfa idade. Agora, lá vai ela
derrubando barreiras antes que chegue o dia.

Criado em 02-10-2005 sobre Personages in the presence of a metamorphosis, de Joan Miró, para Sentir - Verbo Intransigente

Eternidade


Olha bem nos meus olhos!
Eu conheço você
Você me conhece
Somos todos um corpo
viajando há milênios,
se desmanchando,
se reencontrando,
se misturando em abismos e campinas.

O mesmo pincel que traçou minha tão perfeita tez
pode colorir seus lábios,
pode limitar suas paisagens,
traçar e refazer seus caminhos.

O movimento que meus olhos trazem
é o percurso da eternidade:
parados, olham o infinito,de soslaio, revelam outras estradas.


Criado em 22-09-2005) sobre Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, para Sentir - Verbo Intransigente

Criança


Ainda há uma criança me puxando pela mão
convidando para brincar
inventar histórias,
não ter medo de conjugar o verbo criar;

Há tempos preservo esta companhia,
minha porção criança,
gerúndio e sinônimo de alegria,
que alimenta
meu estado de bem-criação;

Não é nada inocente este ente!
É um travesso recomeço
que encontro pelos cantos,
sempre que ameaço
com uma malcriação.


Criado em 05-09-2005 sobre As meninas D'Anvers, de Pierre-Auguste Renoir, para Sentir - Verbo Intransigente

Tao



É este equilíbrio que busco:
oferta complexa
na aparente simplicidade;
surpresa na manga no final da linha.
O Tao mirando o caos
tal e qual direito e avesso
cores opostas,
compostas e prontas
para colorir o prisma e rodar a vida.


Criado em 31-08-2005 sobre Composition A, de Pieter Mondrian, para Sentir - Verbo Intransigente

O círculo


Um rodopio sem fim
que traz de volta o que passou,
leva embora o que ficou,
para de novo retornar
neste ritual incessante
e variante.

Às vezes
o círculo se abre,
vira reta desequilibrada;
Às vezes o círculo é uma flecha
apontando para o infinito;
outras vezes, ainda,
é uma roda apertada
que não deixa
transgredir;

E é neste movimento
que nos encontraremos um dia:
no leva-e-traz da vida,
na impermanente
estática,
na renovação
constante
do
equilíbrio.

Criado em 05-09-2005 sobre Dance, de Henri Matisse, para Sentir - Verbo Intransigente

Fragmentos

Meus pedaços recortados se
soltam no mesmo espaço em que se
encontram com outros traços e se
aglomeram descompassados se
um novo ritmo se
instala se
houver condição e se
de novo se
quiserem ser
religação.


Criado em 20-09-2005 sobre Composition VIII, de Wassily Kandinsky, para Sentir - Verbo Intransigente

Meu desaguar



Não pensei que fosse revelar tanto de mim
neste choro compulsivo
que mostrou minhas entranhas
carne-osso-coração.

Eis-me aqui desaguando
todas as perdas
em luto cúbico
de multicoloração.

Eis-me desembrulhada
descascada
nariz cheirando os olhos
que miram nuca e orelhas.

Eis-me inteira, intacta
nesta dissolução de
carne-ossos-emoção,
lágrimas saindo dos joelhos,
cabelos, pescoço e tornozelos.

Eis-me ainda recortada
quebra-cabeça a ser montado;
vesga, linda, luminosa,
pele e osso em cor primária.

Um belo exemplar com várias opções
de ângulos para se admirar.


Criado em 29-08-2005 sobre Mulher Chorando, de Pablo Picasso, para Sentir - Verbo Intransigente

Ausência

Como é difícil descrever a tua ausência
se continuas presente nas lacunas,
na invisível existência de teu ser.
É impossível não te adivinhar as formas,
não reconhecer teu rosto,
mãos, pernas e coração
no oco da emoção,
na escultura revelada pelo avesso,
na máscara marcada com contornos eternos.

Daqui pra frente, pelo resto dos meus dias,
terei sempre o negativo da imagem
como a confirmação da existência.
Enquanto não fores mais
a vida se revelará;
e eu viverei percebendo
que falta uma parte da minha paisagem.


Criado em 24-09-2005 sobre Homem Invisível, de Salvador Dali, para Sentir - Verbo Intransigente

Meu grito

Estou passando por esta ponte
que parece não ter fim!
Um espanto contínuo
permanece em meus olhos,
na boca aberta,
(boquiaberta a lembrança,
lá e cá oculta por uma névoa
providencial, intrometida).
Na memória de minhas guerras
não há sangue derramado
Há campos de flores cultivadas,
um pouco de sonhos abandonados,
cavalos alados,
um tanto de real felicidade
e apenas um corpo estendido no chão.




Criado em 28-08-2005 sobre O Grito, de Edvard Munch, para Sentir - Verbo Intransigente