Eram cinco bonequinhas, eram cinco pedrinhas, cinco conchinhas, cinco bolas de papel, cinco pedras grandes, cinco dados, cinco sementes de pêssego, cinco pastilhas coloridas caídas de alguma parede no caminho da escola, cinco pedaços de qualquer coisa. Todos com nome de Maria.
Assim como as inseparáveis Três Marias no céu, nós conservávamos as nossas cinco na terra como peças invariáveis de um jogo que usávamos para brincar a qualquer momento. Se fossem quatro, não tinham qualquer valor. Só serviam as cinco, de tamanho, formato e peso semelhantes. Elas pulavam, rolavam, passavam por baixo da ponte, eram arremessadas no ar, caíam e se esparramavam, mas eram sempre reagrupadas.
Não havia Cinco Marias para comprar em loja de brinquedos. Penso que uma das etapas mais prazerosas da brincadeira, pelo menos para as meninas, era justamente compor um jogo de Cinco Marias; inventar as peças, agrupar objetos semelhantes e partir para a brincadeira. Os grupos mais freqüentes eram os de pedras. E como gostávamos de formar novos grupos de pedrinhas semelhantes! Descobríamos pedras de todo formato. Nessa procura, até pequenas pedras quadradas passavam a integrar nossos conjuntos de Cinco Marias.
Chegava um momento em que cada uma de nós tinha um saco cheio de pedras e de outros objetos que precisavam ser reagrupados sempre que a brincadeira começava. Esparramávamos todas as peças e nos divertíamos formando os vários jogos de Cinco Marias. Creio até que esse era um dos motivos que afastava os meninos desse jogo.
Isso, porém, fazia com que as preliminares de cada jogo despendessem bastante tempo da brincadeira. Na primeira fase, não só eram expostas as coleções de Cinco Marias de cada jogadora – enquanto os meninos chegavam com um único conjunto de pedrinhas e queriam partir logo para o jogo – como também eram estabelecidas as regras da jogada, tarefa que em geral gerava discussão.
Às vezes, ainda, interrompíamos o jogo até para discutir acerca do peso das peças. Se fosse uma pedra muito pesada não servia, porque podia machucar; também não serviam as pedras que fossem muito leves.
A segunda etapa consistia na escolha do grupo de Cinco Marias por cada jogador. Depois de escolhido, combinávamos que esse conjunto teria de ser utilizado até o final da brincadeira, para evitar que cada participante ficasse escolhendo um novo conjunto a cada rodada do jogo.
Depois das pedras, as melhores peças de Cinco Marias eram as confeccionadas com a ajuda das mães. Elas costuravam vários saquinhos de pano que enchíamos de arroz, ou de algodão ou até de areia. As Cinco Marias de pano eram boas para jogar, tinham o peso ideal, ganhavam impulso e mobilidade. Exclusivas das meninas, eram bonitinhas e coloridas, embora ficassem sujas com muita facilidade.
Cerca de três décadas mais tarde, encontrei em uma loja de brinquedos pedagógicos um joguinho de Cinco Marias, formado por cinco sorridentes bonequinhas de pano, com trancinhas, vestidinhos, guardadas em um saquinho do mesmo tecido. Imediatamente, comprei o brinquedo e levei para casa a fim de reviver o jogo que tanto prazer proporcionava à minha infância. Minha onda de nostalgia bateu e voltou na indiferença das minhas filhas, que consideraram o brinquedo chato e sem graça. Disseram que ainda tentaram jogar, mas não conseguiram a coordenação motora necessária para movimentar as peças. Tentei ensiná-las, mas constatei que nem mesmo eu conseguia passar as Cinco Marias por baixo da ponte.
Percebi então que esses brinquedos do tipo “caseiro” apenas viraram moda e objeto de estudo e de curiosidade popular. Hoje eles são encontrados em lojas que vendem material de apoio pedagógico. Muitos foram recuperados das gavetas dos pais e até dos avós, mas não passam de curiosas peças superadas pela natural ação do tempo. (2006)
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29 dezembro 2012
08 dezembro 2012
A cor do pôr-do-sol
O dourado leão rugiu e entreabriu os dentes. Agora, múltiplas janelas brancas permitiam-me ver o mundo lá fora. Tudo era amarelado, quente, tranquilo. À frente da enorme dentadura apareciam longos pelos cacheados e loiros, que aumentavam o tom dourado do interior daquela boca. Como um bebê no colo da mãe, eu me aconchegava àquele mundo. Sabia que havia outro mundo lá fora para conhecer, mas, ao mesmo tempo, tinha certeza de que não queria sair nunca daquele lugar tão confortante.
Do lado de fora, havia uma gestante que criou o hábito de ir ao encontro do marido, ao cair da tarde, para esperá-lo voltar do trabalho. Gostava de andar ao pôr-do-sol. Acreditava que os raios solares daquele horário eram saudáveis para o bebê. Caminhava sempre pelo mesmo caminho, de encontro ao poente, às vezes cerrando um pouco as pálpebras para ver se identificava algum amigo na multidão de silhuetas douradas. Foram nove meses de contato quase diário com aquele mundo amarelado e quente, que alimentava a felicidade que sentia pela chegada do primeiro filho.
Do lado de dentro, novamente o leão rugia e entreabria janelas douradas para o bebê receber os saudáveis raios de sol. Eu sentia o calor, embora não pudesse ver de onde vinha; eu percebia a claridade, mas não sabia que lá fora havia dia e noite; eu acreditava apenas que o mundo que iria me receber era dourado e aconchegante. Quando nasci, não foi exatamente do jeito que eu imaginava, mas era quase igual. Para não esquecer o meu mundo idealizado, toda vez que dormia eu, recém-nascida, recordava as imagens que vivenciara enquanto estava dentro da mãe.
Durante muitos anos sonhei repetidamente com essa cena. Eu, dentro da boca de um leão, em um mundo dourado e aconchegante, uma realidade fantástica que incluía a figura imponente e selvagem do animal que me mantinha enclausurada. Só consegui entender o significado daquele sonho e por que ele se repetia quando me deparei com a cor do pôr-do-sol na parede de um edifício, a caminho de casa, em uma cidade bem distante daquela onde nasci. Estava ali, diante de mim, o mesmo tom dourado do meu mundo onírico. Cerrei um pouco as pálpebras e revi a cena dos dentes do leão entreabertos e o mundo inteiro lá fora em silhuetas amareladas, não identificadas, uma multidão atravessando o poente.
Em consulta à minha mãe, confirmei o que já suspeitava: eu estive por nove meses, dentro de sua barriga, vendo o mundo em silhueta contra o pôr-do-sol. (2006)
Do lado de fora, havia uma gestante que criou o hábito de ir ao encontro do marido, ao cair da tarde, para esperá-lo voltar do trabalho. Gostava de andar ao pôr-do-sol. Acreditava que os raios solares daquele horário eram saudáveis para o bebê. Caminhava sempre pelo mesmo caminho, de encontro ao poente, às vezes cerrando um pouco as pálpebras para ver se identificava algum amigo na multidão de silhuetas douradas. Foram nove meses de contato quase diário com aquele mundo amarelado e quente, que alimentava a felicidade que sentia pela chegada do primeiro filho.
Do lado de dentro, novamente o leão rugia e entreabria janelas douradas para o bebê receber os saudáveis raios de sol. Eu sentia o calor, embora não pudesse ver de onde vinha; eu percebia a claridade, mas não sabia que lá fora havia dia e noite; eu acreditava apenas que o mundo que iria me receber era dourado e aconchegante. Quando nasci, não foi exatamente do jeito que eu imaginava, mas era quase igual. Para não esquecer o meu mundo idealizado, toda vez que dormia eu, recém-nascida, recordava as imagens que vivenciara enquanto estava dentro da mãe.
Durante muitos anos sonhei repetidamente com essa cena. Eu, dentro da boca de um leão, em um mundo dourado e aconchegante, uma realidade fantástica que incluía a figura imponente e selvagem do animal que me mantinha enclausurada. Só consegui entender o significado daquele sonho e por que ele se repetia quando me deparei com a cor do pôr-do-sol na parede de um edifício, a caminho de casa, em uma cidade bem distante daquela onde nasci. Estava ali, diante de mim, o mesmo tom dourado do meu mundo onírico. Cerrei um pouco as pálpebras e revi a cena dos dentes do leão entreabertos e o mundo inteiro lá fora em silhuetas amareladas, não identificadas, uma multidão atravessando o poente.
Em consulta à minha mãe, confirmei o que já suspeitava: eu estive por nove meses, dentro de sua barriga, vendo o mundo em silhueta contra o pôr-do-sol. (2006)
07 dezembro 2012
A sesta
A cidade dormia logo depois do almoço. Não importava se fosse inverno ou verão. Nos invernos até que era compreensível aquele movimento todo nos quartos como se fosse de noite, com todo mundo a arrumar suas camas apressadamente, como se o cochilo não pudesse esperar. Nos verões, no entanto, era inacreditável ver uma cidade inteira sestiando, ganhando aquele aspecto de vilarejo mexicano em filme de bang-bang.
Eu já havia me esquecido dessa característica quando, anos depois, retornei àquela pequena cidade e decidi fazer compras logo após o almoço. Era outono, estava nublado, e percebi que a cidade continuava a mesma da minha infância. O horário da sesta ainda mantinha o mesmo aspecto, o mesmo silêncio só quebrado pelo som do vento ou de um ou outro carro passando solitário. Aparentemente, nada havia mudado. As lojas na avenida mais longa exibiam suas portas coloridas, fechadas, formando um arco-íris no dia cinza. Na praça em frente, alguns cachorros dormiam nas calçadas, enquanto pombas disputavam insetos nos canteiros de flores. Somente os pássaros quebravam a monotonia do lugar. Eram os únicos seres vivos, à vista, que não dormiam. Olhando um pouco mais longe, era possível perceber que os paralelepípedos nas ruas eram as únicas novidades aparentes.
Fiquei ali mesmo, sentada em um banco no centro da praça, esperando a cidade acordar. Um vento frio passava por baixo do banco empurrando as pombas e outros pássaros para um lado e outro da calçada. A situação era adequada para aquelas reflexões que exigem silêncio, solidão e tranqüilidade. Comecei a pensar na minha infância, em quantas vezes havia brincado naquela praça, que parecia ter encolhido. Recordei outras etapas de minha vida, compartilhadas com amigos que ainda moravam lá. De repente, um susto. Uma das pombas havia pousado em cima do banco e começara a puxar meu casaco com o bico. Só então percebi que também havia tirado uma soneca.
As portas das lojas estavam começando a ser abertas, enchendo de ruídos a rua inteira. Os cachorros se levantaram, passaram uns meninos de bicicleta e de um momento para outro toda a cidade acordou, voltou à rua e eu fui às compras, ainda com sono. (2006)
Eu já havia me esquecido dessa característica quando, anos depois, retornei àquela pequena cidade e decidi fazer compras logo após o almoço. Era outono, estava nublado, e percebi que a cidade continuava a mesma da minha infância. O horário da sesta ainda mantinha o mesmo aspecto, o mesmo silêncio só quebrado pelo som do vento ou de um ou outro carro passando solitário. Aparentemente, nada havia mudado. As lojas na avenida mais longa exibiam suas portas coloridas, fechadas, formando um arco-íris no dia cinza. Na praça em frente, alguns cachorros dormiam nas calçadas, enquanto pombas disputavam insetos nos canteiros de flores. Somente os pássaros quebravam a monotonia do lugar. Eram os únicos seres vivos, à vista, que não dormiam. Olhando um pouco mais longe, era possível perceber que os paralelepípedos nas ruas eram as únicas novidades aparentes.
Fiquei ali mesmo, sentada em um banco no centro da praça, esperando a cidade acordar. Um vento frio passava por baixo do banco empurrando as pombas e outros pássaros para um lado e outro da calçada. A situação era adequada para aquelas reflexões que exigem silêncio, solidão e tranqüilidade. Comecei a pensar na minha infância, em quantas vezes havia brincado naquela praça, que parecia ter encolhido. Recordei outras etapas de minha vida, compartilhadas com amigos que ainda moravam lá. De repente, um susto. Uma das pombas havia pousado em cima do banco e começara a puxar meu casaco com o bico. Só então percebi que também havia tirado uma soneca.
As portas das lojas estavam começando a ser abertas, enchendo de ruídos a rua inteira. Os cachorros se levantaram, passaram uns meninos de bicicleta e de um momento para outro toda a cidade acordou, voltou à rua e eu fui às compras, ainda com sono. (2006)
A cortina de Brasília
Brasília estava bem ali na minha sala, com todos os seus monumentos, praças e palácios. Revelava-se em focos de luz destacados no pano azul-marinho, que pendia do varão junto ao teto e se estendia até o chão. Dependuradas na janela, as cenas mostravam uma Brasília distante e fantástica. Despertavam sensação semelhante à que era passada pelas fotos que registravam o homem pisando na Lua, destaque da revista Manchete colocada sobre a mesa de centro. O distanciamento imposto pelas estampas era o mesmo. Nove anos após ser inaugurada, a capital federal ainda era um sonho remoto sustentado pelas imagens que a eternizavam na cortina da sala.
Impressionava-me com as esculturas de Bruno Giorgio flutuando em lagos tranquilos, com os palácios cheios de arcos, com a imensa Praça dos Três Poderes. Desejei conhecer todos aqueles monumentos. Se pudesse, entrava no pano e me integrava às imagens. Pensava que conhecer Brasília seria tão difícil como ver de perto a marca da bota de Neil Armstrong no solo lunar.
Por isso mesmo conformei-me com as figuras carimbadas e com aquela cortina que não combinava com o resto do ambiente, mas deveria estar de acordo com a moda da época, deveria ser uma “cortina bossa-nova”, como o presidente que inaugurara a cidade das estampas. Lembrei-me da velha cortina muitos anos depois quando, ao abrir uma persiana na sala do meu apartamento, avistei uma das cenas do tecido em situação real. Fiquei pensando na relação de tempo e espaço que havia naquele encontro. O tempo passado e o tempo presente estavam misturados na mesma paisagem. A cortina que se balançava à frente dos meus olhos não cobria mais uma janela apenas, mas abria inúmeras passagens para a realidade que eu costumava frequentar no meu dia a dia. Eu, na verdade, agora fazia parte das estampas da antiga cortina e nem me dera conta deste fato até enxergar da janela cenas que desde a minha infância eram tão familiares. (2006)
Impressionava-me com as esculturas de Bruno Giorgio flutuando em lagos tranquilos, com os palácios cheios de arcos, com a imensa Praça dos Três Poderes. Desejei conhecer todos aqueles monumentos. Se pudesse, entrava no pano e me integrava às imagens. Pensava que conhecer Brasília seria tão difícil como ver de perto a marca da bota de Neil Armstrong no solo lunar.
Por isso mesmo conformei-me com as figuras carimbadas e com aquela cortina que não combinava com o resto do ambiente, mas deveria estar de acordo com a moda da época, deveria ser uma “cortina bossa-nova”, como o presidente que inaugurara a cidade das estampas. Lembrei-me da velha cortina muitos anos depois quando, ao abrir uma persiana na sala do meu apartamento, avistei uma das cenas do tecido em situação real. Fiquei pensando na relação de tempo e espaço que havia naquele encontro. O tempo passado e o tempo presente estavam misturados na mesma paisagem. A cortina que se balançava à frente dos meus olhos não cobria mais uma janela apenas, mas abria inúmeras passagens para a realidade que eu costumava frequentar no meu dia a dia. Eu, na verdade, agora fazia parte das estampas da antiga cortina e nem me dera conta deste fato até enxergar da janela cenas que desde a minha infância eram tão familiares. (2006)
04 dezembro 2012
Os vaga-lumes
Os vaga-lumes sempre me fascinaram e eu gostava de capturá-los nas noites de verão. Eles eram tantos espalhados pelos quintais que ao vê-los luzindo aos bandos
eu eliminava minha própria culpa por encerrar uns dois ou três exemplares em
vidros espaçosos, para sair pela rua com a sensação de ter uma lanterna
exclusiva de pirilampos. Coisa de criança!, ouvia sempre alguém falar quando
passava com meu vidro piscando rua afora. Ficava orgulhosa. Tomava aquela
observação como um elogio à minha condição de criança responsável pela façanha
de capturar vaga-lumes para uma função tão criativa.
Criatividade não faltava também às outras crianças da vizinhança, embora algumas brincadeiras com os luminescentes insetos espalhassem medo. Havia um menino que gostava de assustar as meninas - essa relação é milenar? - colocando vaga-lumes dentro da própria boca e surgindo no escuro com os lábios abertos e os dentes semifechados, parecendo uma caveira no meio da noite. Era horrível e nojento. Depois que passava o susto, ele abria os dentes e uns dois insetos saíam de sua boca. Ele cuspia no chão e dava gargalhadas de vencedor, enquanto os assustados amigos reclamavam de sua audácia.
Havia outro menino que gostava de colecionar os pirilampos e fazia pesquisas para explicar por que havia variedades de vaga-lumes, de tamanhos e formas diferentes, todos com a “lanterninha do bumbum”, uns mais marrons outros mais esverdeados. Nós prestávamos atenção por alguns minutos, ele apagava a luz para mostrar vários vaga-lumes piscando ao mesmo tempo e, em seguida, o grupo partia em busca de outros exemplares no quintal mais próximo.
Um dia a infância acabou; a pequena cidade cheia de quintais de pirilampos ficou distante; os vaga-lumes piscavam cada vez mais longe, no meio do campo, enquanto o ônibus deslizava pela estrada afora. Até que, perdido na cidade grande, um adulto que também pegava pirilampos quando era criança avistou os luminosos insetos em situação inusitada e registrou:
“Em meio da ossaria
Uma caveira piscava-me...
Havia um vaga-lume dentro dela.”
O poeta Mário Quintana revelava a infância com seus versos, fazendo sem querer uma referência à brincadeira assustadora do menino que colocava vaga-lumes dentro da boca.
(2006)
Criatividade não faltava também às outras crianças da vizinhança, embora algumas brincadeiras com os luminescentes insetos espalhassem medo. Havia um menino que gostava de assustar as meninas - essa relação é milenar? - colocando vaga-lumes dentro da própria boca e surgindo no escuro com os lábios abertos e os dentes semifechados, parecendo uma caveira no meio da noite. Era horrível e nojento. Depois que passava o susto, ele abria os dentes e uns dois insetos saíam de sua boca. Ele cuspia no chão e dava gargalhadas de vencedor, enquanto os assustados amigos reclamavam de sua audácia.
Havia outro menino que gostava de colecionar os pirilampos e fazia pesquisas para explicar por que havia variedades de vaga-lumes, de tamanhos e formas diferentes, todos com a “lanterninha do bumbum”, uns mais marrons outros mais esverdeados. Nós prestávamos atenção por alguns minutos, ele apagava a luz para mostrar vários vaga-lumes piscando ao mesmo tempo e, em seguida, o grupo partia em busca de outros exemplares no quintal mais próximo.
Um dia a infância acabou; a pequena cidade cheia de quintais de pirilampos ficou distante; os vaga-lumes piscavam cada vez mais longe, no meio do campo, enquanto o ônibus deslizava pela estrada afora. Até que, perdido na cidade grande, um adulto que também pegava pirilampos quando era criança avistou os luminosos insetos em situação inusitada e registrou:
“Em meio da ossaria
Uma caveira piscava-me...
Havia um vaga-lume dentro dela.”
O poeta Mário Quintana revelava a infância com seus versos, fazendo sem querer uma referência à brincadeira assustadora do menino que colocava vaga-lumes dentro da boca.
(2006)
02 dezembro 2012
Lembranças
Ando por aquelas ruas procurando lembranças
pedras, poeira, os mesmos muros e musgos nas reentrâncias
Quem levou minhas lembranças?
Quem podou minhas árvores e espantou minhas galinhas?
Ninguém mora ao lado, aos lados, na frente;
só os desconhecidos passantes
- não mais revolucionários, mas traficantes -
Sós, os passantes de uma fronteira sem dono;
Sós, os transeuntes, filhos dos filhos já mortos;
Sós, os visitantes, procurando lembranças;
Sós, todos atravessamos o dia tropeçando nas mesmas pedras.
pedras, poeira, os mesmos muros e musgos nas reentrâncias
Quem levou minhas lembranças?
Quem podou minhas árvores e espantou minhas galinhas?
Ninguém mora ao lado, aos lados, na frente;
só os desconhecidos passantes
- não mais revolucionários, mas traficantes -
Sós, os passantes de uma fronteira sem dono;
Sós, os transeuntes, filhos dos filhos já mortos;
Sós, os visitantes, procurando lembranças;
Sós, todos atravessamos o dia tropeçando nas mesmas pedras.
Vacas no ar
“Oh! As vacas estão se coçando na antena de novo!” Invariavelmente, era o que meu tio dizia sempre que a televisão enchia-se de chuviscos, traços horizontais e verticais. Ficava um borrão só e ele, para não deixar o clima azedar, vinha com a velha história que contava desde que o primeiro aparelho de TV chegou a sua casa. Insistia que o sinal ficava ruim porque as vacas vinham em grupo coçar as costas antes de se deitarem para dormir.
“Um dia elas ainda vão derrubar aquela antena”, vaticinava. “Ai sim nunca mais vamos ver essas porcarias”, arrematava para deixar minha tia furiosa. Ele podia dizer isso, porque era o único que conhecia a antena instalada próximo à cidade. Era uma antena que distribuía o sinal para toda a região, mas não era o equipamento suficiente para sustentar a transmissão sem interferências.
“O pior é que se essa se vai, ficamos assistindo só os programas dos castelhanos”, dizia ainda às gargalhadas. E tinha razão. Podia ficar pior do que já era. Se o sinal das emissoras brasileiras caísse, entrava no ar, imediatamente, o sinal das TVs uruguaias, imagens que guardo até hoje como sendo as primeiras que assisti em um aparelho de televisão. Batman e Robin, em preto-e-branco, em espanhol, em um volume altíssimo na casa do vizinho. Uma situação inesquecível!
Diante dessa expectativa, acreditando ou não, torcíamos toda noite para que as vacas não resolvessem coçar as costas na antena. Minha irmã, menor, acreditava realmente que as vacas causavam a interferência no sinal da TV. Às vezes, para provocar briga, ficava repetindo: “As vacas estão chegando, as vacas estão chegando!”
Eu, querendo mostrar que era esperta, falava qualquer bobagem em resposta. Dizia, por exemplo, que as vacas não se coçariam na antena porque sabiam que levariam choque elétrico. As vacas, eu dizia para todos, eram espertas, inteligentes, sabiam onde estava o perigo.
Mais chato que ver televisão com a iminência de perder o sinal a qualquer momento era ouvir dos mais velhos as mesmas reclamações de sempre, cada vez que os chuviscos surgiam. Meu tio era o único que não reclamava, mas atacava com a história das vacas; minha irmã ficava provocando com o conto que as vacas estavam chegando.
Os episódios em torno da perda ou da manutenção do sinal de transmissão eram tão corriqueiros e reincidentes que hoje nem conseguimos lembrar os programas que assistíamos na televisão naquela época. Todos, no entanto, sempre se lembrarão da ironia de meu tio atribuindo a um animal a capacidade de tirar do ar os produtos de um veículo de comunicação que chegava para conquistar todos os cantos do planeta. (2006)
“Um dia elas ainda vão derrubar aquela antena”, vaticinava. “Ai sim nunca mais vamos ver essas porcarias”, arrematava para deixar minha tia furiosa. Ele podia dizer isso, porque era o único que conhecia a antena instalada próximo à cidade. Era uma antena que distribuía o sinal para toda a região, mas não era o equipamento suficiente para sustentar a transmissão sem interferências.
“O pior é que se essa se vai, ficamos assistindo só os programas dos castelhanos”, dizia ainda às gargalhadas. E tinha razão. Podia ficar pior do que já era. Se o sinal das emissoras brasileiras caísse, entrava no ar, imediatamente, o sinal das TVs uruguaias, imagens que guardo até hoje como sendo as primeiras que assisti em um aparelho de televisão. Batman e Robin, em preto-e-branco, em espanhol, em um volume altíssimo na casa do vizinho. Uma situação inesquecível!
Diante dessa expectativa, acreditando ou não, torcíamos toda noite para que as vacas não resolvessem coçar as costas na antena. Minha irmã, menor, acreditava realmente que as vacas causavam a interferência no sinal da TV. Às vezes, para provocar briga, ficava repetindo: “As vacas estão chegando, as vacas estão chegando!”
Eu, querendo mostrar que era esperta, falava qualquer bobagem em resposta. Dizia, por exemplo, que as vacas não se coçariam na antena porque sabiam que levariam choque elétrico. As vacas, eu dizia para todos, eram espertas, inteligentes, sabiam onde estava o perigo.
Mais chato que ver televisão com a iminência de perder o sinal a qualquer momento era ouvir dos mais velhos as mesmas reclamações de sempre, cada vez que os chuviscos surgiam. Meu tio era o único que não reclamava, mas atacava com a história das vacas; minha irmã ficava provocando com o conto que as vacas estavam chegando.
Os episódios em torno da perda ou da manutenção do sinal de transmissão eram tão corriqueiros e reincidentes que hoje nem conseguimos lembrar os programas que assistíamos na televisão naquela época. Todos, no entanto, sempre se lembrarão da ironia de meu tio atribuindo a um animal a capacidade de tirar do ar os produtos de um veículo de comunicação que chegava para conquistar todos os cantos do planeta. (2006)
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